Foto: François Gailland (1996) |
Em 04 agosto de 1996, Björk se apresentou no Verbier Festival, série de concertos de canções clássicas na Suíça. Na ocasião, a artista participou de uma representação única do Pierrot Lunaire, obra marcante e de destaque na história da música. A composição é de 1912, e foi feita por Arnold Schönberg baseada no ciclo de poemas homônimo escrito por Albert Giraud. Trata-se de um espetáculo com poemas interpretados a partir de técnicas vocais únicas, em uma espécie de idioma específico na ópera, o Sprechgesang. Termo alemão, cuja a tradução literal é a mistura de canto e fala, durante uma declamação.
Em 21 textos, o trabalho é dividido em três partes. Na primeira, Pierrot, "intoxicado" pela lua, fantasia sobre amor, sexo e religião. Na segunda, o personagem encontra tudo isso em um mundo cheio de pesadelos e blasfêmia. Já na terceira, é assombrado por pensamentos nostálgicos de seu passado. Os instrumentos são organizados de maneira diferente em cada número, e trazem uma grande variedade de sons.
O maestro Kent Nagano regeu a orquestra, e foi o responsável por convencer a islandesa a participar do evento. Björk se considera parte da cena pop, e sempre demonstrou desinteresse em ver seu trabalho classificado como música clássica. Segundo ela, é um ambiente muitas vezes esnobe e elitista. Em fevereiro de 2016, Nagano disse ao The Guardian: "Foi uma das melhores experiências da minha vida". Segundo ele, é uma obra de extrema dificuldade de se executar, e a artista conseguiu transmitir a emoção necessária de forma extraordinária.
Em artigo de 2003 no Montreal Mirror, Nagano contou que Björk aceitou o convite após muita insistência dele. Para que conseguisse, teve que lhe explicar que, na verdade, Schoenberg criou "Pierrot Lunaire" como protesto contra a arrogância na cultura alemã. Kent o descreveu como uma pessoa comum, fator que acredita que fez com que Björk se identificasse e quisesse experimentar o projeto. O compositor já era um dos favoritos dela durante o tempo em que esteve na escola de música, na Islândia: "Ela ficou muito à vontade estudando o material. Suas habilidades criativas cheias de intensidade e imaginação, contribuíram para que o ambiente de trabalho fosse profundamente inspirador. Todo mundo que assiste a um show, percebe algo que ainda não sabia. Esse senso de descoberta, é o que torna a música ao vivo tão extraordinária. Se a gente encara tudo com a mente aberta, a oportunidade de se ter uma tremenda reação emocional pode ser ainda mais revigorante do que poderíamos imaginar".
Em entrevista ao Gramophone, em 2002, a islandesa disse: "Eu não tinha nenhuma intenção de ir por esse caminho. Kent Nagano me disse que Schoenberg criou essa obra, pois queria que fosse interpretada por alguém comum que não estudasse a técnica do canto. Para mim, isso parece fazer sentido! Daí pensei: "Ok, posso colocar meu coração e ser sincera. Não seria como se eu estivesse fingindo algo que não sou. Costumo cantar apenas o que componho, então foi bom experimentar letras de outra pessoa, sem mencionar o desafio da peça, claro! Minha consciência não ficaria limpa a menos que eu aprendesse exatamente da forma como Schoenberg concebeu. Tenho muito respeito por ele, não queria decepcioná-lo. Acredito na anarquia e tal, mas não tem sentido seguir com essa ideia, a menos que primeiro a gente conheça as regras. Realmente acredito que esse compositor foi um dos gênios deste século, e a maneira como ele fez mostra que queria que o intérprete trouxesse seu próprio caráter e individualidade para a apresentação. A natureza como força maior que a disciplina. Com esse projeto, fui até lugares que ainda não tinha ido com a minha voz. O que vejo como disciplina é o fato de poder escrever e organizar músicas. Na minha concepção, cantar é apenas puro instinto, algo que segue seu próprio caminho. Normalmente, deixo tudo seguir naturalmente, e o resultado desse canto me faz rir e também me assusta. A minha voz é estranha tanto para mim, quanto para você. E ter que quase "amarrá-la", como se estivesse a obrigando a usar roupas e se comportar com boas maneiras, foi meio interessante. Acabei percebendo que, embora muitas pessoas façam isso, esse não é o meu lado mais forte. Acho que causaria mais danos do que benefícios à minha voz. Os poemas em Pierrot Lunaire são tão importantes e escandalosamente bonitos, de um jeito muito feroz".
Foto: Divulgação |
Foram necessários três meses de ensaios ao lado da Lyon National Opera. Björk precisou arrumar tempo em sua agenda, foi uma época na qual ela esteve muito ocupada. No ano anterior, a artista havia dado início a uma turnê de 105 shows, que terminou em fevereiro de 1997. Para este festival, ela também contou com as orientações de Murray Hipkin, diretor musical envolvido com teatro e ópera. Durante o set, ele, inclusive, tocou piano. Mais tarde, Hipkin foi treinador vocal de Björk em Prayer Of The Heart, colaboração dela com o músico John Tavener, lançada em 2004, que tem duração de 15 minutos. No Verbier Festival, a islandesa por duas vezes cantou peças com duração de até 20 minutos. Segundo relatos da época, não foi anunciada antes de subir no palco, o que a fez ser muito aplaudida pelo público quando reconhecida, bem como no final do ato ao ser ovacionada de pé. Era época das filmagens do vídeo de I Miss You, e seus lindos cabelos estavam de outra cor. Björk usou um vestido rosa, do modelo já tradicional das apresentações da era Post.
Em 2004, a islandesa disse em entrevista ao The New Yorker: "Para mim, foi uma experiência incrível. Essas músicas dão muito espaço para a imaginação de um intérprete, sabe. Originalmente, foram escritas para uma cantora de cabaré e não para alguém destreinada como eu. O Kent Nagano até queria gravá-las comigo, mas realmente senti que se fosse assim, eu estaria invadindo o território das pessoas que cantam isso durante toda uma vida".
Para a rádio BBC, complementou: "Provavelmente, jamais teria pensado em fazer parte disso. Ele entrou em contato comigo e sugeriu. A princípio, pensei que estivesse maluco, mas quando decidi tentar percebi que ele estava certo. Deve ser uma das mais lindas poesias escritas. Não foi gravado (em estúdio), pois continuo ficando sem tempo, e achando que a minha prioridade sempre foi e sempre será minha própria música. Preciso escrever canções melhores".
Setlist:
1. Mondestrunken
2. Columbine
3. Der Dandy
4. Eine blasse Wäscherin
5. Valse de Chopin
6. Madonna
7. Der kranke Mond (Part II)
8. Galgenlied
- Apenas dois trechos muito curtos do áudio de uma gravação amadora da performance estão disponíveis, Mondestrunken e Galgenlied, mas quase não dá para entender direito. A fonte veio de um bootleg, que até hoje não foi compartilhado integralmente. Acredita-se que ainda esteja em posse de alguns fãs colecionadores de raridades ao redor do mundo. Confira clicando AQUI (via blog gudmundsdottirbjork).
- De acordo com artigo do site Gramophone, existe uma filmagem amadora do show, que foi realizada por um membro da equipe de Björk. Segundo a produção do festival, o evento foi registrado com equipamento profissional. No entanto, até hoje não foi publicado, e eles não tem permissão para isso.