"Como eu estava sempre atrasada para a escola, comecei a enganar a minha
família. Minha mãe e meu padrasto tinham o cabelo comprido e eles eram um
pouco hippies. Aos dez anos de idade, eu acordava primeiro do que eles, antes
do despertador tocar. Eu gostava de ir na cozinha e colocar o relógio 15
minutos mais cedo, e então eu iria acordá-los... E depois acordá-los novamente
cinco minutos depois... E de novo. Demorava, algo como, quatro “rodadas”. E
então eu acordava meu irmãozinho, todo mundo ia escovar os dentes, e eu
gostava de ter certeza de que eu era a última a sair e, em seguida, corrigir o
relógio. Fiz isso durante anos.
Por muito tempo, eu era a única criança da minha casa, e havia mais sete
pessoas vivendo comigo lá. Todos tinham cabelos longos e ouviam
constantemente Jimi Hendrix. O ambiente era pintado de roxo com
desenhos de borboletas nas paredes, então eu tenho uma certa alergia a essa
cor agora (risos). Vivíamos sonhando, e todos aqueles 'conceitos', sabe:
"vamos viver em um avião", o que parece brilhante para uma garotinha. Imagina
ser criada por adultos em que tudo o que querem fazer é brincar contigo o dia
todo, contar histórias de quatro horas de duração, e fazer pipas... Mas quando
eu tinha cerca de 7 anos, disse: "Ok. Já é o suficiente. E quanto a todos
esses sonhos? Vamos realizá-los". Então me tornei o oposto daquilo e bastante
autossuficiente. Saí de casa aos 14, consegui um apartamento, e entrei em
bandas. É uma coisa comum na Islândia. Você começa em um emprego de verão e
aprende cedo sobre trabalho e sobrevivência.
Eu sou o resultado da união de dois hippies que não tinham nenhuma disciplina.
Naturalmente, eu queria ser o oposto. Quando criança, eu já amava organização.
Tive a oportunidade de estar cercada por pessoas que ouviram a minha opinião.
Meus pais eram muito ocupados. Assim, com menos de 5 anos de idade, aprendi a
calçar meias e a me alimentar sozinha para ir à escola. Também me inscrevia em
aulas de música, etc. Eu era a minha própria mãe cuidando da minha outra
metade criança. E funcionou muito bem, era um relacionamento saudável. É
natural para mim fazer as coisas da minha maneira. Talvez por essa razão, a
maioria das pessoas pensem que eu sou ingênua. Poucos veem em mim o lado
racional, o bom senso altamente desenvolvido.
Entre os hippies, reinava um forte sentimento de culpa. Independentemente do
que a gente fizesse, iria dar errado, não deveríamos usar carros. Para mim, o
negócio é dizer: temos que viver o presente. Somos pagãos, não tem a ver com
voltar atrás, mas sim com admitir as coisas.
Mas me considero muito sortuda! Tive uma infância muito feliz. Ter sido criada
por uma mãe hippie foi algo muito especial. Acredito que a mídia, que por
alguma razão me acha alguém muito peculiar, olha para mim e pensa: "Mas por
qual motivo a Björk é assim? O que há de errado?" E aí descobrem sobre a minha
família e ficam: "Ahhh, então é isso! A mãe dela era uma hippie e não deu
limites quando ela era uma criança!". O que não é totalmente o caso. Eu tive
uma mãe maravilhosa! E o melhor de tudo sobre ela é que me deixava fazer o que
eu queria. Ela confiou em mim, pois sabia que o que eu fazia era para o meu
bem. Mas é claro que, fui como todos os filhos que quando crescem, querem ser
o oposto daquilo que foram seus pais. E ainda bem que podemos fazer
isso!
Fui criada por uma mãe que acreditava fielmente na natureza e que queria que
eu ficasse descalça 24hrs por dia, então cresci com um grande complexo de
culpa em relação aos carros e arranha-céus. Fui ensinada a odiá-los, e, por
isso, acho que estou mais ou menos no meio termo, por assim dizer. Vejo a
geração mais jovem do que eu fazendo música e tentando se manter humana,
conservando sua característica orgânica e imperfeita.
A minha mãe me mandou para a escola de música aos cinco anos de idade.
Quando criança, eu queria aprender a tocar um instrumento musical chamado
"Oboé", mas ela não podia pagar por ele, então eu aprendi a tocar flauta e
fiquei com esse sentimento meio imaturo de que era minha segunda opção durante
os 6 ou 8 anos de prática.
Mas devo muito a esse instrumento. Porque todos aqueles anos de luta para
aprender a tocá-la me ensinaram a respirar melhor, a trabalhar meus pulmões".
Lembram da capa do
1º disco da Björk, de 1977, quando ela tinha apenas 12 anos? A mãe dela foi a responsável pela
ideia da foto icônica registrada em um estúdio local de Reykjavík. Segundo
ela, a islandesa começou a cantar melodias muito cedo por volta dos sete meses
de idade (!).
"Quicksand é uma música sobre a minha mãe que teve um ataque cardíaco e
ficou em coma por seis dias. Essa foi uma das primeiras canções de
Vulnicura, composta 4 anos antes do lançamento. Trata do meu
relacionamento com ela e o relacionamento dela com a mãe dela, que foi bem
complicado, e ainda sou eu pensando nas coisas que tenho que resolver para
aliviar a 'bagagem' que a minha filha receberá. É como uma corrente, de mãe
para mãe. Preciso enfrentar a negatividade e as questões familiares não
resolvidas. É tão fácil para as gerações mais jovens apontar e julgar, pois
isso é algo humano e talvez seja até um truque engraçado da natureza. Estamos
sempre vendo nossas vidas repetidas vezes, de novas perspectivas.
Acredito na humanidade, canto para ela. Tenho a impressão de estar continuando
o que meu pai, um sindicalista ativo durante quarenta anos, ou o que minha
minha mãe, uma mulher notável do povo, fizeram no passado.
Minha mãe era muito ativa nos anos 60 e 70 como ativista, e eu não poderia ter
feito nada do que fiz se não fosse pelas mulheres de sua geração.
Eu a vi junto de outras mulheres brigarem muito por seus direitos em muitas
lutas, ganhando e perdendo muitas delas. Foi meu papel ser essa pessoa
livre, eu estava habilitada. Mesmo sendo mulher, fiz todas as coisas que os
garotos faziam. Foi assim por 30 anos, e isso é realmente importante. Nós vamos
ter que fazer isso por outra geração, aproveitar todas as ocasiões para falar
sobre isso e sempre usar nosso julgamento. Eu tenho que me lembrar que não
estou fazendo isso por mim. Eu estou fazendo isso por todas as mulheres!
Minha mãe era uma feminista muito presente, e sempre levantou a questão de que
era a hora de deixar de nos queixarmos o suficiente, para começar a fazer as
coisas. Então, eu passei a sempre me certificar de que eu não estava só
reclamando. Percebo que as gerações mais jovens talvez não tenham a mesma
experiência que a minha, então senti que tenho que mostrar que não estão
sozinhas e apoiá-las. Vejo que com o passar dos anos, ganhamos espaço para o
feminismo, mas isso muda ao longo do tempo, e já que o temos é importante que
exponhamos os problemas para resolvê-los".
1975 marcou um episódio importante na história da Islândia, quando 90% das
mulheres do país entraram em greve em uma luta por direitos iguais: "Sim, eu
estava lá com a minha mãe. Eu tinha dez anos. Nós acabamos de ter outros
protestos, pois (...) ainda existe um problema com a questão do salário. Mesmo
que essa lacuna seja a menor no mundo, ainda estamos tentando nos livrar
disso. Então em 2016, as mulheres deixaram seus empregos às 14hrs38min, que é
a porcentagem da diferença, e foram ao centro da cidade protestar. Há imagens
realmente bonitas delas no YouTube agora, todas cantando. Eu fiquei muito
orgulhosa!".
Dentre os feitos notáveis da mãe de Björk na Islândia, uma situação ganhou
fama mundial em 2002, quando ela entrou em greve de fome por quase quatro
semanas em protesto contra a construção de uma usina de alumínio da companhia
norte-americana Alcoa em uma reserva ecológica no país e em Vatnajokull (um
dos locais da gravação do videoclipe de Jóga), a maior geleira da Europa.
Ela conseguiu mobilizar a opinião pública contra o projeto, mas não impediu
que a implantação seguisse em frente. Sua saúde era, inclusive, considerada
frágil. Ela então agradeceu pelo apoio de todos ao encerrar o protesto e disse
que, era preciso fazer mais do que isso para evitar os danos. Ambientalistas
temiam pelos danos a serem causados pela construção.
"Minha mãe costumava dizer a mim e meus irmãos: “Eu não fiz as coisas que eu
queria, porque eu tinha vocês”.
Eu estou destinada a fazer o que eu quero e ainda assim ter filhos. Eu
costumava responder: "Eu gostaria que você tivesse nos levado para a Itália ou
África ou onde quer que você quisesse ter ido”. Eu teria ficado bem com isso,
de modo que foi o que eu meio que decidi fazer. Mas então, você começa a ouvir
que é muito autoindulgente. Acho que eu já consigo equilibrar tudo isso de
alguma forma. Mas há outras coisas que não fazem sentido. Como, se o seu
parceiro é muito ocupado, é muito natural para uma mulher dizer: "Oh, ele
estará muito ocupado no próximo verão, eu não vou trabalhar até lá”. Você não
tem nem mesmo que discutir isso. Se certificar de que está optando em ser
capaz de ficar em casa. Mas um cara não faria isso. Pequenas coisas que ...
ainda temos algum trabalho a fazer. Eu tenho que agradecer a minha mãe ... Eu
só sei valorizá-la agora, especialmente depois que me mudei para Nova York.
Ela nos levou para uma pequena casa na periferia da Islândia, em Reykjavík. Lá
vazava quando chovia, então tínhamos que acordar no meio da noite e procurar
por baldes vazios. Mas o que ela fez foi nos levar para longe do patriarcado.
Estávamos neste mundo onde as mulheres comandavam!".
Hildur Rúna Hauksdóttir faleceu no último dia 25 de outubro de 2018 aos 72
anos de idade. Ela lutou incansavelmente pela natureza intocada da Islândia.
Em uma entrevista concedida em 1998 a um jornal local, o avô de Björk disse
que a mãe da cantora sempre foi rebelde e uma líder, inclusive lutando para
que mulheres também pudessem aprender sobre construção civil em uma
universidade no país. Hildur foi uma grande entusiasta da medicina natural,
trabalhou em diversos remédios não tradicionais. Ela também estudou cirurgia
pediátrica em Londres.
Fontes: NME; Arena; Planet Rock; Dazed & Confused; Record
Collector; Rolling Stone Brasil; INTER/VIEW Magazine; W Magazine; Iceland
Magazine; Irish Times; New York Times; Télérama; Time Out London; Corriere
della Sera; Red Bull Music Academy; AnOther Magazine; BBC; dv.is;
Fréttablaðið;
Fotos: Divulgação.