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"Também gosto do clichê de "utopia", uma palavra incrivelmente desgastada"


- No vídeo para o single "The Gate" você usa uma vulva no peito, uma vagina aberta que dá origem a um organismo luminoso. O que isso significa?

Trata-se de um músculo emocional que tenho que "treinar". O álbum é uma espécie de exercício de yoga para mim. Não é coincidência que a imagem do coração partido tenha sido assombrada pela poesia há tanto tempo. É uma imagem física: seu peito implode. Depois de dois anos ou mais, surge um vazio e você precisa restaurá-lo. "The Gate" é sobre poder fazer uma escolha neste momento: treiná-lo ou deixar seu coração despedaçado, talvez pelo resto de sua vida. Se você diz: eu quero luz na minha vida, quero que minha ferida se torne um "portão", se você pode fazer isso, você pode ter 50% de luz e 50% de escuridão. Mas se você se concentrar na escuridão, ela logo assumirá a totalidade. Isso soa como um biscoito da sorte!

- Isso serve de porta de entrada para outra pergunta, pois também descreve sua parceria artística com o Arca, que parece ser muito mais que um produtor em "Utopia". Os ouvintes imediatamente reconhecem as composições de vocês, mesmo que não se mantenham uma só, mantêm um certo apego. Seria um tipo de modelo de relacionamento?

Sim, isso me deixa tão feliz! No início, ele era mais  como um produtor de aluguel, "uma arma contratada". Alejandro tem 28 anos, estamos em diferentes pontos de nossas vidas, tenho 51 anos de idade, mas, apesar da diferença, temos uma boa relação musical.

- Em "Blissing Me" você também canta sobre esse relacionamento. Fala-se de "dois nerds de música obsessivos": você e Arca também estão no mesmo nível hierárquico?

Eu não acredito que a hierarquia traz coisas muito positivas. Vivemos no pós-patriarcado há muito tempo, o matriarcado virá com força total ainda neste século. Não me interpretem mal, Alejandro e eu adoramos os homens, essa energia é excelente. Mas colocamos a emoção primeiro. Eu também vejo isso com meus filhos: ontem mesmo eu escutei minha filha de 15 anos falando que das crianças da escola, os meninos são os mais emocionais! Esta é a utopia para vocês homens, que agora podem ter alma e vulnerabilidade.

- Não é possível isso na arte? Muitos artistas pensam que não estão em sintonia com as convenções sociais.

Muitos artistas homens vivem em hierarquias íngremes quando alcançam um certo status. Neste mundo, existe todo um sistema em torno deles. E não gosto disso e não acredito nisso. Talvez porque sou mulher. Talvez porque eu aprendi uma lição importante no início, aprendi a saber, como é doloroso colocar alguém em um pedestal. Eu tinha apenas 11 anos quando meu primeiro álbum foi lançado na Islândia. Eu imediatamente me tornei uma celebridade. Não consegui pegar um ônibus sem as crianças sussurrando: "Oh, essa é a menina da TV! Oh, ela está na última fila, porque ela acha que ela é especial".

Então eu comecei a sair dali. Mas aí eles começaram a dizer: "Oh, ela está na frente, porque ela acha que ela é mais importante". Meu forte desejo de ser alguém real e fazer coisas normais vem daquele momento. Isso também com as pessoas que me rodeiam.

- O termo "Utopia" também é uma reminiscência de ideologias devastadoras que queriam romper com a história e deixar o desastre para trás, "Tabula Rasa" é uma das suas novas músicas. Como foi lidar com isso?

Tenho um estranho senso de humor e gosto disso. Também gosto do clichê de "utopia", uma palavra incrivelmente desgastada. Eu me divirto. Presumo que o humor é geralmente subavaliado no meu trabalho. Você sabe, trazer esperança para o mundo hoje em dia é meio bobo, claro. Mas essa sou eu! "Vulnicura" emitiu uma energia muito negativa. É por isso que eu tive que manter a luz em "Utopia" para que minha família e eu possamos sair dessa situação. Isso é deliberadamente um pouco ridículo.

- Você disse que "Utopia" é o seu "álbum Tinder". Ao falar sobre o conceito dessa palavra, pensei no romance de Thomas More, de 1516. Onde há uma ilha com monogamia.

A dificuldade é descobrir quem você quer viver no mundo monogâmico, certo? Não é apenas sobre isso ... no entanto, algumas músicas também estão "namorando" outras canções escritas para alguém muito específico. Mas é também sobre um nível metafísico. O álbum é o início de uma nova fase de vida destinada a se abrir novamente.

Eu acredito em monogamia, então não é fácil para mim. Não estou aberta, e isso é um grande problema para mim! É por isso que escrevo essas músicas.

- As máscaras são parte da sua imagem atual. Por um lado, como um escudo protetor, por outro lado, expressam emoções que são difíceis de descrever. O que é mais importante para você, a proteção ou reforçar um sentimento?

Eu penso que ambas as coisas. As máscaras mantém a minha privacidade, permitindo maior expressão na comunicação com estranhos. Em Reykjavik eu nunca faço isso, eu conheço todos ali. Mas pessoas como eu também querem sair para jantar com suas crianças sem ter que se preocupar com outros retirando seus telefones do bolso e tirando fotos. Eu posso ser muito rigorosa. Quando eu vou a shows, eu uso uma máscara fina de tecido transparente, então minha expressão facial fica pouco visível. Isso me protege. Eu posso ficar bêbada e ainda falar com meus fãs.

- As máscaras lhe salvam da imposição de ter que ser você mesmo?

É um alívio tirar uma pausa para mim mesma. Eu observo isso em shows ao ar livre. É aí que os rituais pagãos se sobressaem, penso eu. As pessoas lá estão procurando se divertir. Se eu usasse uma máscara andando pela cidade, me chamariam de narcisista. Mas em um festival ao ar livre, ser teatral, de repente não é mais extravagante, e sim libertador.

- Se comunicar com os outros não é o mais fácil quando todos estão lá se balançando e se divertindo com seus fones de ouvido. O que você acha disso?

Então, eu escutei muita música sozinha, sempre. Quando adolescente, me sentava à frente da mesa e ouvia um álbum do início ao fim. Não tolerava interrupções. Minha hora favorita para isso era depois da escola, antes que os outros chegassem em casa. Entre às 17 e 19hrs eu ficava sozinha e ouvia um ou dois álbuns. E esse era o momento mais valioso do dia para mim. Portanto, estou totalmente a favor dos fones de ouvido!

- Me referia ao uso de fones de ouvido em lugares públicos, não na sala de estar. Estaríamos nos reunindo e interagindo muito pouco?

Ah, tem muitos shows onde as pessoas se reúnem para isso. No entanto, já se torna um problema para os músicos, porque se apresentar é a única maneira de ganhar dinheiro. Eles não podem descansar, especialmente os jovens. Eles não têm tempo para suas músicas e álbuns, eles estão constantemente em turnê. Estão longe de familiares e amigos, isso é uma merda! Então, eles ficam em constante colapso do outro lado do mundo. Isso se resolve apenas se os artistas ganham mais dinheiro com streaming. Quero dizer, estou bem, minha geração está bem, nós compramos casas - não tenho que ganhar mais dinheiro para viver. Mas e os músicos com 20 anos de idade? Se não pudermos lidar com esse problema do streaming, eles não conseguirão superar isso.

- Björk em entrevista para o SPIEGEL ONLINE, novembro de 2017.

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