Björk veste roupa desenhada por Rei Kawakubo, em 2015, em ensaio de Inez+Vinoodh |
“Essa entrevista poderia ser chamada de Folclore do Futuro ou algo envolvendo a palavra "folclore"?”. Essa foi uma solicitação de Björk antes da Interview Magazine publicar em outubro de 2019 uma conversa por e-mail inédita entre ela e Rei Kawakubo, fundadora da marca Comme des Garçons e da Dover Street Market. Confira a tradução completa do bate-papo:
BJÖRK: Querida Rei, estou muito honrada por termos essa conversa! Você é uma das pessoas que eu mais admiro, estou emocionada que isso esteja acontecendo. Estava pensando onde os interesses de nós duas se sobrepõem e, por algum motivo, comecei a pensar nas raízes, no folclore, ou na falta dele. Você mencionou em uma entrevista de 1982, que queria se afastar das influências folclóricas da moda japonesa. Acho isso muito interessante. Sempre achei que as culturas japonesa e islandesa têm coisas em comum que, quando o budismo e o cristianismo chegaram, foram feitas com menos violência do que em outros países, o que serviu de pontapé para as crenças mais “pagãs” anteriores, como a nórdica e o xintoísmo. (Na Islândia,) a mitologia (þór, freyja, óðinn) foi mantida aberta. Então, quando a “civilização” aconteceu, ainda havia acesso total à natureza, então há menos culpa flutuando entre essas duas coisas na região
REI KAWAKUBO: Não sinto que alguma vez eu já tenha sido influenciada, de maneira concreta, pela natureza ou pelo mundo natural como tal. A natureza é forte como é. Do mesmo modo que a natureza é forte por sua própria existência, sem ter que ser "projetada". O que tento é fazer roupas fortes. Mas isso é uma coisa extremamente difícil de realizar. Também nunca fiz nada pensando conscientemente no Japão. Passo todos os dias procurando por algo novo, algo que vai além de qualquer referência cultural, e que não tenha nada relacionado com a minha origem.
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Ao longo dos anos, Björk usou diversos modelos de Rei Kawakubo, inclusive em um dos looks do videoclipe de Isobel (Fotos: Reprodução/bjork.fr).
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Ao longo dos anos, Björk usou diversos modelos de Rei Kawakubo, inclusive em um dos looks do videoclipe de Isobel (Fotos: Reprodução/bjork.fr).
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BJÖRK: Eu entendo. Sinto como se estivesse fugindo dos emblemas nacionais clichês por toda a minha vida, hahaha: o suéter islandês, os chapéus de elfos e vikings... E, para ser sincera, a maneira mais forte pela qual sou influenciada pela natureza na Islândia não é a romântica, mas a quantidade de espaço que a paisagem tem por lá. Quase não existem plantas, pessoas, nem muitos animais - pelo menos aqueles mais perigosos ou que bloqueiam a nossa visão. Quando viajo para outros países, especialmente os com grandes cidades, me sinto muito claustrofóbica e não consigo fazer minhas caminhadas cantando. Tenho notado que muitos músicos e compositores parecem buscar áreas rurais ou casas longe de tudo, no maior estilo eremita, onde não há poluição sonora, o que lhes proporciona uma tela de áudio em branco para escreverem. Porém, também vi que isso parece não afetar tanto as pessoas que trabalham com recursos visuais (a arte, a moda e assim por diante). Talvez seria algo muito simples, do tipo: Os ouvidos e os olhos funcionam de maneiras diferentes? O som preenche uma sala inteira de uma maneira mais oceânica, mas no caso de uma pintura ou de uma escultura, só as percebemos quando nos viramos até elas, e então, muitas vezes, tudo se torna como uma "ideia"? Estas são apenas especulações... Como você se sente sobre o espaço de trabalho e aquele feito para morarmos? Quanto e de que tipo de espaço você precisa?
KAWAKUBO: Obrigada por esta pergunta. Achei muito interessante pensar sobre a diferença em como os artistas trabalham nos espaços, e de que forma isso se relaciona; Em como os músicos ouvem ao seu redor, e como os artistas visuais precisam usar os olhos, já que não podem escutar suas obras. Gostaria de poder ouvir meu trabalho algumas vezes. De certa forma, eu até faço isso. Me lembro que, quando fiz um trabalho com a Six Magazine, nos anos 80, estava pensando na ideia de sexto sentido, que engloba outros cinco. Agora, a minha luta mais constante ao tentar encontrar algo novo é, acredito eu, não relacionada a qualquer espaço físico como tal, exceto aquele na minha cabeça, que já está muito cheio. O espaço de que preciso é aquele que pode destruir cinquenta anos de experiência. Mas o nosso próprio é importante. Não posso trabalhar ou estar em um espaço onde o ar não flui livremente. Também quero dizer que o aspecto visual de um trabalho sonoro parece muito importante e essencial para a coisa toda funcionar da forma que enxergamos, como os videoclipes e os filmes. Tudo faz parte de um todo, tudo isso importa. É o mesmo na minha situação. Quando estou fazendo roupas, não consigo deixar de pensar em que lugar vão acabar, em que ambiente, em que contexto. É verdade que o todo para você é tão crucial quanto cada parte do processo?
BJÖRK: Hahahaha! "O espaço de que preciso é aquele que pode destruir cinquenta anos de experiência". Eu amei isso!!!! Acho que, talvez, eu tenha aprendido, ao longo dos anos, a ser cada vez mais específica quando se trata de coisas visuais. Tenho traduzido lentamente a música para aquilo que posso representar em imagens. Preparo toda uma paleta de referências para compartilhar com as 'pessoas visuais' com quem trabalho ao longo de cada álbum, geralmente uma paleta de cores muito precisa, abordando emoções, texturas e timbres. Penso que você está certa nessa sua opinião. O caráter de cada álbum é realmente forte, geralmente mais forte que eu. Gostaria de perguntar sobre os personagens que você costuma formar com suas roupas. Eles geralmente são bastante brincalhões. Como você permite que as mulheres sejam 'trapaceiras' e “folclóricas”? Me lembro de como entrar em uma de suas lojas me libertou do típico arquétipo de mulher ocidental “civilizada”, em como, para mim, isso seria algo mais andrógino, como uma criatura. Talvez isso seja o folclore atual ou do futuro?
KAWAKUBO: Quando estou pensando em fazer roupas, não imagino usá-las ou qual será a imagem de alguém ao vesti-las. Crio em um lugar no qual o corpo ou a pessoa estão separados delas, que então se tornam vestimentas como um resultado disso.
Rei Kawakubo (Foto: Kazumi Kurigami) |
BJÖRK: Isso é algo sublime! Outra coisa que eu gostaria de discutir é o quanto admiro como você administra a Dover Street Market. Eu já disse isso antes na mídia, mas estou curiosa para saber o seu ponto de vista. Talvez apenas uma matriarca seja tão generosa em compartilhar seu status e visão, para que outras pessoas cresçam com seus próprios nomes. É difícil imaginar que os grandes designers masculinos façam tamanho esforço pelos outros.
KAWAKUBO: Gosto do resultado de combinar diferentes imagens, objetivos e personalidades, além de estilos contrastantes. Nunca trabalhei pensando no resultado de nada. Todos os dias dos (meus) últimos 50 anos (de carreira) tem sido simplesmente o acúmulo de tudo isso. Não é realmente uma escolha. A possibilidade de sinergia e o acaso na união de diferentes poderes criativos é o que me interessa em todas as partes, mas não há nada consciente, nenhum tipo de agenda.
BJÖRK: Eu admiro muito essa resposta. Também prospero dessa energia, mas tenho que dizer que é algo bastante altruísta. Por mais perigoso que seja o dualismo do matriarcado e do patriarcado (é claro que nada é tão preto e branco), devo salientar que tipicamente uma “mãe” se alimenta da energia de ver seus filhos prosperarem, esse é o alimento que ela procura. Mas o ego do artista masculino, ao longo dos séculos, não deu espaço para seus assistentes, ajudantes ou colegas de trabalho crescerem também, e raramente ouvimos seus nomes. Sinto muito, Rei, por culpadamente simplificar isso de forma tão extrema, mas arrisco na chance de lhe oferecer um elogio profundo e esperançosamente significativo, que espero que você aceite.
Rei Kawakubo (Foto: Eiichiro Sakata) |
KAWAKUBO: É verdade que sempre me senti desconfortável com elogios, especialmente neste ramo. Mas, claro, agradeço-lhe humildemente, você é uma artista genuína e sincera. Obrigada. Como parte do meu trabalho, minhas palavras sempre foram breves. Gosto de mensagens curtas e poderosas, eu não gosto de dizer muito, especialmente para jornalistas. Nunca tive consciência de como ser mulher afetou meu trabalho. É claro que não gosto de discriminação de nenhum tipo, e ser uma mulher de negócios no Japão nunca foi fácil, mas seu ponto de vista sobre o dualismo é interessante, mas acho que vai além do homem e da mulher. Penso que a criação pura pode prosperar, e a verdadeira liberdade finalmente ser alcançada, quando todos os tipos de dualismo; esquerda e direita, real e irreal, homem e mulher, etc; forem transcendidos. Você não acha?
BJÖRK: Concordo em um milhão por cento!!!!!
KAWAKUBO: Björk, quero lhe agradecer por suas incríveis perguntas profundamente pensadas. Atenciosamente, Rei.
BJÖRK: Lhe agradeço de volta, Rei. Com um imenso respeito sem fim. Calorosamente, Björk.
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Me lembro de ir à loja da Comme Des Garçons, em Londres, com Nellee Hooper por volta de 1992. Na época, era definitivamente a mais sagrada em que eu já tinha estado. Fiquei andando na ponta dos pés, e me senti desconfortável em falar com as outras pessoas de lá, que poderiam notar o meu olhar ganancioso. A Rei me lembra a minha avó - uma versão japonesa muito mais jovem. Ela estava confiante, calma, sem cair na pressão de participar de pequenas conversas ou outros comportamentos sociais, sem sair de sua zona de integridade pelos outros. Acho que ela definitivamente provou que é possível ser corajosa, que é possível avançar com dignidade" - Björk para a Another Magazine (2010).