A arte de saber ouvir o futuro. Björk, uma artista visionária e futurista, observa o presente, toma para si e o enriquece. Ela descobre e cria sons que se ajustam precisamente às suas ideias para músicas. Tudo isso em uma pesquisa e experimentação contínuas. Não foi diferente em "Fossora", o 10° álbum de estúdio da carreira.
Confira a tradução da entrevista da artista para o site Spettacolo Sky TG24:
Raízes: "A conclusão a que cheguei é que tenho que criar um mundo sonoro verdadeiro, no qual possa demonstrar a autenticidade das minhas raízes, é isso que sou. Em "Fossora" eu fiz exatamente isso. O fato de eu ter demorado cinco anos para fazer esse álbum também me deu mais facilidade para desenvolver cada canção, cada arranjo mais longo e não forçar nada. Ouvir tudo ao nosso redor é essencial. Por exemplo: eu gosto de morar em um lugar como Reykjavík, na Islândia, onde vivemos na natureza. Eu moro na praia. Podemos ouvir os sons do vento, mas há também os sons da cidade".
Diferenças entre o novo disco e o anterior: "O "Utopia" foi um álbum muito maduro. Sempre o defini como uma criação feita nas nuvens, com elementos como flautas e sintetizadores que criam sons sem gravidade ou expectativa. Com "Fossora" eu queria voltar à terra, sentir a força da gravidade. Digamos que "Utopia" foi um período de ideias, enquanto "Fossora" é mais concreto. Durante a pandemia, quando ficamos presos em casa por anos, voltar às nossas raízes nunca foi algo tão forte. Sair com os amigos, estar com família e curtir ao máximo o país e assim por diante... É um álbum sobre o prazer de ficar em casa, amar e perceber que tudo o que precisamos está bem ao nosso lado".
Mergulhar em novos territórios para criar: "Eu acho que, como cantora e compositora, é importante ser honesta sobre o que se está experimentando e pelo o que está passando. A vida continua com todas as mudanças, quer a gente goste ou não. Podemos tentar controlar, mas quase nunca é possível! Penso que como compositora é importante ler todas as mudanças ao meu redor e, claro, é essencial ser consistente com essas ideias".
Colaborações: "Nos últimos três anos, fiquei na Islândia, e ter todas as pessoas com que me importo ao meu lado foi algo lindo. Acho que minha família nunca esteve tão perto. Eu adorei e foi muito natural incluir meus filhos no álbum. Também trabalhei com Serpentwithfeet, um dos meus melhores amigos em Nova York, com quem já havia cantado em "Blissing Me". Tive algumas conexões recentes. Emilie Nicolas é uma artista que tenho ouvido muito recentemente, e foi muito natural convidá-la para colaborar. Kas é um produtor de techno indonésio que escuto há muito tempo e pedi a ele uma colaboração. No geral, há menos convidados em "Fossora" do que nos meus discos anteriores. Eu só queria estar em casa, com meus amigos e familiares".
Em bate-papo no Double J, Björk comentou sobre outros detalhes por trás da criação de "Fossora":
"Eu escuto as músicas deles [Gabber Modus Operandi] há alguns anos. Quando eu fazia "mini raves de quarentena" com 10 pessoas na minha sala de estar, tentávamos tocar de tudo. Quando eram as músicas deles, todo mundo ia para a pista de dança. Não importa de que geração fossem, todos batiam cabelo por 15 minutos e depois iam se sentar e tomar outra taça de vinho. Eu realmente gosto de como Kas, o cara com quem eu colaborei, combina ritmos da música gamelan e usa instrumentos balineses autênticos, mas também sons techno".
Björk sempre viu paralelos na mistura de novos elementos com o que é dito tradicional: "Me parecia muito familiar. No álbum há também uma música com coral. Eu acredito que a cultura do coral da Islândia é provavelmente uma das coisas mais islandesas que existem! Em cada vila há um coral. Muitos compositores da Islândia escreveram música para coros. Eu gosto de ter coisas muito islandesas, e ser muito, muito islandesa e sentir esse tipo de autenticidade da Islândia correr por mim e pelo meu trabalho. Ao mesmo tempo, quero fazer parte da conversa que está acontecendo em 2022 e ser uma musicista global.
Eu acho que é perigoso quando as pessoas estão fazendo música ou cultura que é sobre raízes. Isso isola [a música] em algum tipo de "ideia de museu", onde ela se torna um monumento de algo que passou há muito tempo. Eu tento ser vibrante e parte da conversa atual. Sinto que podemos ter um pé nas raízes e estar conectados às nossas raízes, enquanto nosso outro pé está em qualquer ano do atual momento".
Ciclos: "Para mim, o "Vulnicura" foi quase como o fim de um período da minha vida, enquanto "Utopia" foi o início de um novo momento. Acredito que no início de cada uma dessas épocas, a gente meio que vem com manifestos do tipo: "Desta vez, vou fazer isso e aquilo e não vou cometer todos aqueles erros". Temos uma lista para nós mesmos de todas as coisas que desejamos que a vida seja, uma espécie de receita para o paraíso. É um instinto muito humano, o da sobrevivência, na verdade. Então, se metade daquilo que queremos se tornar realidade, é o suficiente.
"Utopia" era muito assim. Eu sinto que "Fossora" vem depois disso. É hora de pousar na Terra e ver se todas essas ideias que eu tive funcionam. Acho que é por isso que eu estava interessada sonoramente em coisas muito fundamentadas, como seis clarones e bumbos muito, muito profundos e rápidos. Era quase como se perfurar no chão e fazer um ninho aconchegante. A paleta de cores do álbum é formada por cores muito terrosas: vermelho escuro, verde escuro, tentando isolar o foco neste "aninhamento" em particular, cavando sentimentos no chão.
Na quarentena, talvez tenha sido claustrofóbico até certo ponto, mas também foi muito fundamentado. Os poucos amigos ou familiares que podíamos ver, nós estávamos vendo muito, muito, muito mais. Então, desenvolvemos relacionamentos mais profundos com essas pessoas. Talvez tenhamos descoberto: "Eu não tenho que viajar pelo mundo para fazer muitas coisas, eu posso fazer muitas dessas coisas apenas no meu próprio bairro", o que eu realmente acho lindo. Esse álbum é meio que também um pouco sobre isso.
Reykjavík fica em uma península, então a maioria de nós tem acesso ao oceano e às montanhas. Estamos na natureza aqui. Então, eu ainda poderia caminhar todos os dias na praia. Muitos amigos meus ficaram presos no meio de uma cidade e não podiam nem sair do apartamento. Definitivamente, não passei por algo assim. Sinto pelas pessoas que não tiveram acesso à natureza durante a pandemia".
Álbum de cogumelos: "Acho que os músicos falam uma linguagem bastante visual às vezes. Tentamos encontrar atalhos visuais. Falando com minha engenheira de mixagem, Heba Kadry, eu dizia: "Ah, este é meu álbum de cogumelos", e ela respondia: "Ah, ok, eu tenho isso!". Significa querer um som pesado, meio obscuro e confuso. "Utopia" era muito digital, muito "alta definição" com "sons aéreos" e poucas linhas de baixo ou bumbos e coisas assim. Se aparecessem, era muito ocasionalmente. Ancoravam as músicas, mas não com tanta frequência. No início da criação dos álbuns, eu apenas escrevo o que quero escrever e não penso em conceitos, mas muitas vezes, tipo dois anos depois, – dependendo do álbum – começo a ter um momento em que ouço todas as músicas consecutivas e então fico: "Oh, ok! É o tipo de álbum tal". Para mim, é algum modo estranho de "piada sonora". Quero dizer, o violino pode ser "cru e grotesco" e também muito sofisticado. Mas no geral, eu diria que seis clarones são mais "terrosos" do que sete flautas".
Atopos: "Não é coincidência que, quando escrevi essa música, Trump ainda fosse o presidente [dos Estados Unidos]. Acho que foi apenas alguns meses antes da eleição de Biden. A diferença entre democratas e republicanos nos EUA estava aumentando, e sinto que está acontecendo em muitos outros países no momento. Então, "Atopos" é sobre essa lacuna e como superá-la".
Embora o discurso político pareça mais dividido do que nunca, essas lacunas também existem em nossos relacionamentos pessoais: "Como acontece com amantes ou amigos. Quando saímos, vamos nos concentrar nas coisas que temos em comum? Que ambos gostamos do mesmo tipo de música? Ou vamos focar no que não temos em comum? Que um de nós gosta de esportes e o outro de artes visuais. Ou [que somos de] gerações diferentes, ou seja lá o que separa as pessoas. Gostos diferentes para comida ou qualquer outra coisa. Eu sinto que, em muitas amizades ou relacionamentos amorosos, é uma escolha. Quando você sai com essa pessoa, você está focando principalmente no que vocês têm em comum? Ou você está focando nas coisas que os separam? A música é como uma meditação sobre isso e a razão pela qual eu queria que o beat, ou o clima de "Atopos" fosse um pouco agressivo, é porque é uma espécie de confronto: "Saia dessa. Se você quer uma união, você tem que se concentrar nas coisas que temos em comum". Quando as pessoas ficam presas em focar nas coisas que nos separam e então reclamam que não há união!".
Reunir conceitos de macro e micro é uma das muitas coisas que tornaram a música de Björk tão intrigante e fascinante por tanto tempo. Em "Declare Independence", do álbum "Volta", de 2007, ela cantou tanto para um país inteiro, quanto para uma única pessoa: "Quando escrevi essa música, eu estava muito ciente de que queria incluir o aspecto emocional, e o aspecto pessoal e íntimo. Acho que é grande parte do que faço no meu trabalho. "'Declare Independence" é endereçada às Ilhas Faroé e Groenlândia que, acredite ou não, em 2022 ainda são uma colônia da Dinamarca, o que é inacreditável! Mas também, eu queria escrever uma letra que fosse... digamos que para alguém que trabalha em um abrigo de mulheres pudesse dizer a uma mulher: "Declare independência! Não deixe ele fazer isso com você!". Poderia ser uma música de protesto, ou sobre a justiça em um nível muito, muito pessoal".
Músicas para a mãe: As músicas "Sorrowful Soil" e "Ancestress" são homenagens à mãe de Björk, a ativista Hildur Rúna Hauksdóttir, que morreu em 2018. Foi ela quem iniciou o caminho de Björk na música: "Quando eu era criança, eu estava sempre cantando e cantarolando muito. Eu era meio introvertida e não gostava muito de linguagem. Então, ela me mandou para a escola de música aos cinco anos, o que foi muito importante para mim. Provavelmente, me sinto mais "complicada" [quanto a isso], mas tive sorte. Acabou bem!".
Ficou muito complicado alguns anos depois, quando Björk assinou um contrato de gravação e se tornou uma estrela ainda na infância: "Na Islândia, foi um disco de ouro. Significava que as pessoas na rua ou no ônibus me reconheceriam, algo que eu não estava totalmente preparada. Mas minha mãe queria o melhor para mim, e acho que talvez ela não entendia o efeito psicológico que uma criança enfrenta ao perder a inocência e se tornar uma celebridade aos 11 anos de idade. Tive sorte, porque a Islândia é uma pequena vila e não acho que tenha sofrido muito por causa disso. Tive que "contra-atacar" muito para consertar, mas tudo bem!
Obviamente, todas as coisas boas que vieram dessa experiência foi que eu estava em um estúdio de música aos 10 anos, vendo como tudo aquilo funcionava com todos os engenheiros, aprendendo a pronunciar palavras em um microfone. Ter todo aquele tempo gasto no meu álbum, o que eu acho que para uma criança de 10 ou 11 anos é muito incomum. Estou muito grata por ela ter me dado isso. Depois dessa experiência, fiquei tipo: "Eu nunca vou fazer isso de novo. Fazer um álbum solo é o pior de todos os males"; Talvez seja por isso que eu estive em bandas por 16 anos. Eu só queria estar sempre em segundo plano e fazer parte de um grupo. Fui muito brutalmente direto na democracia da energia das bandas. Quando meu álbum solo saiu, eu tinha 27 anos, o que provavelmente é muito tarde se você comparar com outros cantores e compositores. Sinto que provavelmente estava mais pronta em muitos níveis, incluindo o lado visual, psicologicamente e também para colaborações. Talvez, inconscientemente, meio que fiz minha lição de casa por esse tempo. Talvez, minha mãe tenha me empurrado para os holofotes um pouco cedo demais, mas consegui, por 16 anos, meio que me esconder".
A importância de ser egoísta: Ouvindo um tipo de música tão bonita, complexa, sobrenatural e, às vezes, desafiadora como a de Björk, alguns podem se perguntar se ela cria apenas para si mesma ou se mantém as expectativas de seus fãs em mente enquanto trabalha.
"É uma daquelas perguntas que eu poderia dizer "sim e não"", ela responde quando questionada se considera seu público enquanto compõe. "É sobre a generosidade da música, que é esse tipo de coisa mágica! Aprendemos muito rapidamente que os melhores shows são quando a gente é tão generoso que acabamos sendo egoístas. Ou tão egoístas que somos generosos, com essas duas coisas se encontrando no mesmo ponto. Quando se está preso no meio disso, não se consegue aquele momento universal.
Se você está tentando agradar 10 de seus amigos, seu parceiro, algum nicho de 10.000 pessoas por aí em algum lugar, críticos de música ou qualquer outra coisa, você interrompe o fluxo de alguma forma! Mas se está trabalhando em si mesmo, como quando faz praticando ioga ou em uma caminhada, você está fazendo isso para seu próprio bem-estar! Esses momentos são aqueles em que realmente poderá ser o mais generoso. É esse tipo de contradição, que é mágica".
A ideia é que, em última análise, se você criar exclusivamente para si mesmo, sem qualquer consideração de partes externas, quase acidentalmente fará um trabalho que ressoe mais forte com os outros:
"Sinto que, se for fiel à minha própria jornada e me concentrar nisso, a longo prazo, se você olhar para meus álbuns quando tiver 85 anos ou algo assim, acho que os momentos em que provavelmente fui mais generosa foram provavelmente os momentos em que fui mais egoísta. Momentos em que eu estava tentando me curar de algum desgosto traumático ou algo assim. De alguma forma, eu estava criando algum tipo de bálsamo para mim. Esses são os momentos em que a gente realmente cria bálsamo para os outros. Quando assisto a filmes, leio livros ou escuto canções, esse é o tipo de música que me nutre".
A maneira como Björk explica isso faz muito sentido, mas não há nada que seja fácil. Na verdade, quanto mais se pensa sobre isso, menor a probabilidade de ter sucesso: "É o tipo de coisa que, se você tem consciência, tipo: "Ah, se eu fizer esse bálsamo, pode ajudar essas pessoas" - acaba perdendo a magia. É uma pequena contradição estranha".
Ao considerar sua contribuição para o mundo, Björk percebeu que está essencialmente contando sua própria história e nos deixando encontrar as partes disso que ressoam em nós. Ela vê as complexidades da vida como enigmas e reconhece que os enigmas de todos são diferentes. Isso não significa que não podemos nos relacionar com os desafios e alegrias dos outros:
"Se penso nos meus ouvintes quando estou escrevendo? Sim, como documentarista. Mas eu faço isso [através] do relacionamento entre mim e eu mesma. Lidando comigo mesma e [meu] enigma, seja lá o que for. Se isso ajuda os outros [com] os enigmas que eles têm para lidar com eles mesmos, isso é incrível. É lindo que possa fazer isso também! Mas não posso pensar nisso como a principal razão pela qual estou fazendo o que estou fazendo, porque então é como dar um tiro no próprio pé. A magia vai parar de funcionar!".
A título de comparação, ela aponta para a obra da escritora Anaïs Nin: "Sinto que meu papel como cantora e compositora é documentar a vida de uma mulher passando por todas as diferentes idades e fases da vida. Eu lia muito os diários de Anaïs Nin quando eu tinha 20 anos. Eu lia tanto que as pessoas me perguntavam: "Por que você está lendo tanto ela? Tipo, ela é boa, mas ela não é tão boa". Eu não entendi muito bem naquele momento, mas acho que entendo melhor agora. Fiquei muito fascinada com a forma como ela começou a escrever diários aos 11 anos e ela fez isso até a morte [aos 73 anos]. Acho que o que me fascinou foi o tipo de democracia das faixas etárias. Todas são iguais, não importa se você está escrevendo em um diário, se você tem 12 ou 22, 32, 52 ou 72 anos, é tudo igualmente importante. É a sua conversa consigo mesmo, e como você lida com o que está ao seu redor. Todos essas etapas merecem a mesma atenção de você. Todas elas têm seus desafios, e todos elas têm seus benefícios. Cada faixa etária tem coisas que são mais fáceis e coisas que são mais difíceis".
Björk diz com orgulho que não leu todos os livros de Anaïs Nin. Ela quer se relacionar com cada um deles o mais forte possível: "Até hoje, só leio os diários dela até a faixa etária em que estou. Quando eu tinha 20 anos, li os livros dela sobre quando ela tinha 20 anos. Aos 40, quando ela estava na casa dos 40. Então, na verdade, eu ainda não li os diários em que ela estava mais velha do que eu. Guardei para os meus 60 e 70 anos".
Esperamos que, como Nin, Björk continue compartilhando seus enigmas, suas ansiedades, sua alegria e como ela está lidando com tudo isso, nas próximas décadas.
"Fossora" já está disponível em todas as plataformas digitais.
Foto: Vidar Logi.