Em uma tarde fria de sexta-feira no final de agosto, em um restaurante vazio de Reykjavík, Björk Guðmundsdóttir estava tendo problemas para se concentrar. “Meus olhos estão em todos os lugares olhando para as pessoas, não consigo me concentrar”, ela reclama, se levantando para trocar de lugar. Finalmente confortável, ela se inclina para a frente para indicar que está dando total atenção. "Estou com você", diz ela.
O novo álbum de Björk, "Fossora", é o primeiro em cinco anos - o maior período de tempo que ela passou sem lançar um álbum desde seu primeiro disco solo, "Debut". Ele também foi lançado em um momento de contrastes e reviravoltas tanto para a artista quanto para o mundo em geral. No período intermediário desde "Utopia" de 2017, Björk passou pela perda de sua mãe, sua filha saindo de casa - e uma pandemia global.
“Foi realmente incrível para mim, porque eu poderia ficar em casa. Eu não arrumei minha mala por dois anos ou mais, que é o mais longo tempo desde que eu tinha dezesseis anos”, diz Björk sobre sua experiência com a pandemia de Covid-19, quase com culpa.
“Não houve muita mudança do estilo de vida aqui. Eu estaria mentindo se dissesse o contrário, porque o álbum é muito sobre esse período”, acrescenta ela. “Eu tinha tantos amigos que conheciam pessoas que faleceram ou que ficaram presas em um quarto por meses, e não tínhamos nada disso”.
Björk teve sorte, ela diz. Sorte de estar na Islândia, onde as restrições eram menos severas e os números de casos de Covid mais baixos, sorte de estar perto de seus filhos e entes queridos, e sorte porque ela tinha um álbum totalmente novo para criar.
“Para mim, foi o momento perfeito. Eu estava escrevendo!".
Mas Björk resistiu ao desejo de se envolver em uma produtividade pandêmica exagerada. Enquanto muitos de nós [islandeses] nos preocupávamos em como gastar nosso tempo recém-descoberto com projetos de tricô e fabricação de pães caseiros, a artista aproveitou o tempo para fazer algo que ela nunca havia se entregado anteriormente – desacelerar.
“Todo mundo ficou tipo: "Oh, este é o momento mais estranho de todos. Como posso pelo menos tentar transformá-lo em alguma [outra] coisa?". Provavelmente, minha maior fraqueza é colocar muitas coisas no meu "prato"”, diz Björk enfaticamente. “E então decidi não fazer isso e apenas escrever o álbum".
Para aqueles – e há muitos – que a imaginam como uma espécie de criatura mítica, um elfo, imaginar Björk apenas relaxando em casa pode ser inconcebível, mas a musicista insiste que sua vida nos tempos de Covid era relativamente algo comum.
“Eu estava realmente relaxada”, diz ela. “Estava fazendo coisas normais e cozinhando e meio que festejando, sabe? Raves na sala de estar”, Björk ri. "Todos nós [na Islândia] fizemos isso, certo?".
Essa abordagem relaxada explica até certo ponto por que "Fossora" surgiu lentamente. “Eu só escrevia quando me sentia realmente inspirada”, diz Björk. “Meu presente para mim mesma durante esse período foi não ser uma viciada em trabalho”.
Apesar da novidade, mudar para essa abordagem lenta e comedida encantou a artista: “Adorei, adorei mesmo. Parecia pudim de chocolate todos os dias!".
Outro resultado da criação de um álbum pandêmico é que os músicos de apoio e colaboradores que ela apresenta são quase inteiramente islandeses ou moram na Islândia. Isso é um tanto incomum para uma artista que passou grande parte de sua vida vivendo, pelo menos parte do tempo, no exterior, trabalhando com artistas de todos os tipos em todo o mundo. Mas de outra perspectiva, não é nada surpreendente; Björk se vê muito como um pássaro doméstico e acredita que ser considerada uma musicista islandesa é “muito importante”.
“Eu estava em uma banda quando era adolescente”, diz ela, sobre seu início de carreira na cena punk. “E eu era a única que queria ficar em casa”, ela sorri ao admitir isso. “O que é uma contradição muito engraçada. É engraçado como a vida funciona!”.
Apesar de finalmente deixar o país aos 27 anos e ter passado uma parte significativa das últimas três décadas em outro lugar, Björk está convencida de que a Islândia é, e sempre foi, seu lar.
“Estou sempre na Islândia na metade do tempo”, ela insiste. “Ainda assim, quando conheço islandeses, eles sempre dizem: "Ah, pensei que você morasse no exterior". Mas a questão é que, quando estou aqui, não vou a eventos de inaugurações ou grandes coisas assim - apenas frequento pequenos bares e encontro meus amigos. É uma espécie de estilo de vida secreta”.
Agora, porém, com sua filha se formando na escola no Brooklyn e voando do ninho, Björk finalmente vendeu sua casa em Nova York e se vê morando mais permanentemente em seu país de origem a partir de agora. É uma ideia que obviamente a deixa animada, há alegria e alívio visíveis quando ela fala sobre isso.
“É um novo capítulo na minha vida onde estou apenas aqui”, diz ela. “Eu tenho todas as caixas desempacotadas. Tudo o que possuo está na Islândia”.
Além de apenas viver no país, Björk claramente se vê firmemente inserida na comunidade musical islandesa, como evidenciado por quem ela escolheu para trabalhar em "Fossora". O duo underground local Side Project, aparece no segundo single, “Ovule”, ao lado da percussionista da Orquestra Sinfônica da Islândia, Soraya Nayya, que tocou o instrumento Tímpano. Soraya, que é uma das muitas musicistas da orquestra, também executa os distintos sinos tubulares no lamento de Björk por sua mãe, “Ancestress”.
“Passamos muito tempo no "porão de percussão" [de Soraya]”, diz Björk sobre o processo de arranjo. “Foi divertido – como um playground”.
Os álbuns de Björk muitas vezes são conceitualmente ligados a um som ou instrumento específico, e "Fossora" não é diferente. Em contraste com as flautas agudas e ofegantes de seu lançamento anterior, "Utopia", este disco é fundamentado por beats de Gameleon Gabber e clarinetes graves pesados. Enquanto montava o álbum, Björk regularmente levava seus colegas músicos para sua casa de verão nos arredores de Reykjavík para ensaiar. Pode-se imaginar a experiência de ouvir seis clarinetes graves ressoando pelo interior da Islândia.
Mesmo os elementos mais internacionais do álbum foram canalizados através do contexto islandês de Björk. As batidas distintas de "Fossora" foram produzidas pela dupla indonésia Gabber Modus Operandi, cujas canções também tocavam nas "raves de sala de estar" de Björk acima mencionadas. A dupla colaborou com Björk remotamente – por meio de chamadas via Zoom. Parece que até mesmo uma artista de renome mundial não ficou imune às onipresentes reuniões/chamadas de vídeo via Zoom durante o lockdown.
A faixa "Ancestress" também conta com os vocais de outro importante músico convidado: Sindri Eldon Þórsson, filho de Björk. De fato, seus dois filhos emprestam suas vozes ao álbum, com a filha de Björk, Ísadora aparecendo na pungente “Her Mother's House” – abordando o assunto de sua saída de casa de cabeça erguida.
É notável que o que Björk está processando neste trabalho – temas de amadurecimento, síndrome do ninho vazio, a dor de perder um dos pais – são elementos comuns da vida, especialmente para as mulheres. Através de seu lirismo brutalmente honesto, ela se mostra entre duas gerações, com seus filhos de um lado e sua mãe do outro. Apesar da universalidade da situação, parece um território inexplorado; há relativamente pouca produção artística que lida com essas experiências particulares.
“Meus dois filhos são adultos agora”, reconhece Björk. “Sendo assim e tendo minha mãe partido, definitivamente parece uma nova fase em nossa família, o que acho muito interessante. Estou muito curiosa sobre esse período da vida”.
Esta é a primeira vez que os filhos de Björk aparecem em seus discos, apesar do fato de Sindri ser agora um músico estabelecido. Mas tendo ela mesma experimentado a pressão de lançar músicas e aparecer no centro das atenções em uma idade muito jovem – ela tinha apenas 11 anos quando seu primeiro álbum foi lançado. Björk evitou mostrar seus filhos até o momento parecer “certo”.
“Eu me pergunto por que fiz isso pela primeira vez agora”, ela pondera, antes de rir meio respondendo a si mesma: “Às vezes, a gente não sabe por que faz as coisas!”.
“Acho que é porque minha filha está crescida agora, posso lidar com os dois de igual pra igual”, continua Björk. “Eu não sei que palavra usar, pois são todas meio feias – mas minha fama, eu acho – afetou meus filhos”.
Ela coloca a palavra "fama" fazendo aspas, franzindo o rosto em desgosto. “Isso meio que foi terrível na maior parte do tempo”, ela diz honestamente. “Mas eu senti que pelo menos com o meu trabalho, deveria ser sobre vê-los [os filhos] como iguais".
No entanto, Björk se sentiu ansiosa por incluir seus filhos no processo e por colocá-los no centro das atenções de sua verdadeira fama: “É uma sensação boa, mas fiquei preocupada até o fim”, ela admite. “Fiquei perguntando aos dois: "Isso parece bom? Você tem certeza disso? Você pode sair a qualquer momento". Mas ambos estão muito felizes com isso. Eles sentiram que era algo que deveríamos fazer”.
Shows esgotados, sucesso mundial, apresentando seus filhos no 10º álbum de estúdio... É tudo muito impressionante, mas isso realmente faz de Björk uma mãe legal? Ela ri da sugestão. "Você teria que perguntar aos meus filhos", diz ela.
Ela confessa, no entanto, que Side Project são “mais ou menos amigos da minha filha, na verdade” e que, às vezes, ela “invade” os encontro deles. Ela recentemente os viu tocar no centro da cidade na Culture Night e descreve a experiência com alegria.
“Eles são a continuação do tipo de música que eu amo – música eletrônica experimental”, diz Björk com seus olhos se iluminando. “Então, eu estava no céu. Parada ali, com uma taça de vinho, ouvindo Side Project. Eu estava tipo – minha vida é maravilhosa!”, ela explode em gargalhadas. “É tudo que você precisa. E então, bum, fogos de artifício!”.
Embora tudo isso pareça muito legal, Björk acha que há algo mais inerentemente islandês em sair com parentes mais velhos. “Na Islândia, as gerações bebem juntas”, diz ela. “Você vai ficar bêbado com seu avô”.
"Isso é considerado um "choque de horror" em Londres ou Nova York", explica ela, rindo novamente. “Mas não acho que seja porque somos pessoas particularmente legais. É mais uma necessidade. Não há muitos de nós, você naturalmente encontra outras gerações em um show ou uma leitura de poesia ou qualquer outra coisa”.
Björk continua, mais a sério agora. “Eu realmente gosto disso na Islândia, que é uma vila tão pequena e você tem que lidar com isso. Toda a merda que você fez ao longo da sua vida – as boas e as ruins – está lá [no mesmo ambiente]. "Então", ela conclui, brincando novamente: “Nesse sentido, eu já festejei com meus filhos, sim. Isso faz de mim uma mãe legal?”. Ela sorri. "Não necessariamente. Tentei lhes dar espaço também. Para não ser demais”.
Novamente, para quem está fora da Islândia, pode parecer totalmente bizarro imaginar uma artista como Björk apenas aparecer em um show casual no bairro. Se você pesquisar "Casa de Björk" no Google, aparecerá uma foto de um alojamento em Vestmannaeyjar, com a legenda: "Essa é a casa de Björk. O país onde está localizada é chamado de "Moose Gay Moose Tits". É aí que a Björk mora".
Quando digo isso a ela, Björk parece divertida e fica perplexa. "Ok, é estranho", ela ri. Para ficar claro: não é ali que a Björk mora! Mas fazer com que seu público entenda a relação entre os dois lados de sua identidade – Björk, a artista criativa mística, e Björk, a pessoa extremamente reservada e caseira – sempre apresentou um desafio.
“Sempre vivi uma vida muito normal, isso foi muito importante para mim”, diz ela. “Vou às lojas, compro comida, chego em casa e cozinho”. Está muito longe da vida de glamour que seus fãs podem esperar, mas Björk está convencida de que ela tem direito a uma vida privada tranquila.
“Fiz algumas coisas no começo das quais ainda estou me beneficiando, porque sou muito persistente”, explica ela. “Tipo, eu nunca dou autógrafos na Islândia. Eu nunca faço fotos. E todos na Islândia sabem disso, então me deixam em paz”.
Enquanto Björk deixa claro que ela ama seus fãs e que aprecia o apoio deles ao seu trabalho, ela se mostra grata pelas linhas duras sobre sua vida pessoal que ela mesma estabeleceu no início de sua carreira: “Quando tudo isso aconteceu comigo nos anos 90, foi antes da internet”, diz Björk. “Então era tipo: "Ou você é uma celebridade ou não é! E se você é uma celebridade, as pessoas têm acesso 24 horas por dia, 7 dias por semana". E eu fiquei tipo: "Não! Isso não é justo!". Eu sou o tipo de musicista que dou muito de mim mesma. Estou sempre compondo músicas, sempre escrevendo letras, sempre lançando coisas. Essa é a minha maneira de ser generosa”, diz Björk, com sentimento. “Mas você vem me incomodar no supermercado? É pouco provável!" [que ela apresente a mesma "generosidade"], ela diz ao movimentar a mão para baixo fazendo uma linha: “É aí que eu traço o meu limite”.
Parece claro que aos 56 anos, com os filhos independentes e agora profundamente enraizada na Islândia, mas com a cabeça ainda nas nuvens de sua criatividade desenfreada, Björk pode ter encontrado um caminho que funciona. Escreve andando por aí, se grava cantando, volta para casa com uma melodia, que ela depois faz os arranjos: “Isso é sempre mais demorado, porque às vezes leva semanas para eu fazer um arranjo de cordas ou um arranjo de clarinete”, explica Björk. “E então, obviamente, tem os ensaios. E aí se pode mudar os arranjos dependendo do que ouvimos. Então, com tudo isso e, obviamente, os beats, é um processo longo, bem longo!".
Esse longo processo chegou ao fim para "Fossora". No entanto, em breve um novo ciclo surgirá - de apresentações, turnês e muitas, muitas entrevistas. No início de nossa conversa, tive que fazer uma confissão. Embaraçosamente, admiti que "Fossora" é o primeiro álbum de Björk que escutei. Para meu alívio, ela ficou encantada: “Estou bastante animada! Eu fiz algumas entrevistas na minha vida”, me disse com seus olhos brilhando em meio ao eufemismo irônico. “Para mim, é bom começar de um novo ponto”.
De certa forma, a ideia de começar de um novo ponto resume "Fossora". É pós-Covid, pós-luto, pós-maternidade. Uma nova identidade está sendo formada, que para Björk acontece, conceitualmente, “em algum lugar aconchegante no chão, com os cogumelos”. De alguma forma, mesmo com seu décimo álbum, Björk sempre sabe exatamente como romper e começar de novo.
- Entrevista para Josie Gaitens publicada no Reykjavík Grapevine, em outubro de 2022.
Fotos: Vidar Logi.