Pular para o conteúdo principal

Com o álbum Fossora, Björk permanece sendo uma artista encantadora

Alguns artistas permanecem atemporais. É o caso de Björk, que mais uma vez prova sua genialidade com "Fossora", um disco abundante em que o seu canto percorre uma "floresta de cogumelos". De sua casa na Islândia, ela nos fala sobre ecologia, feminismo e cappuccinos:

- Você estava procurando algo em particular com "Fossora"?

O que muitas vezes acontece para nós músicos é que, uma vez terminado o álbum, saímos em turnê e começamos a pensar no próximo em segredo. É importante neste momento se livrar de toda intenção, seguir o instinto. Eu diria até: [se livrar] de suas entranhas!

Pela primeira vez na minha vida, tenho todas as minhas coisas comigo na Islândia. Tudo o que possuo está guardado em caixas em um só lugar. Precisava estar na Islândia, com as minhas raízes, para me sentir em casa, na minha aldeia, com os meus amigos e a minha família.

Todos moram perto. Aquele tipo de vida simples… Sem voar o tempo todo… A pandemia aumentou esse sentimento. Eu poderia ter entrado em pânico e dito a mim mesma: "Tudo bem, vou fazer dez álbuns!!!". Mas, felizmente, pensei o contrário: "Mais devagar, faça menos, volte para as coisas naturais, não forçadas”. Encontrar coragem para não fazer nada, ter uma ideia e dizer a si mesma que é algo muito ruim e ignorar! É um álbum que não foi feito com pressa, e acho que podemos ouvir isso [no resultado]. É um trabalho de cinco anos.

Quando eu tinha que cantar, dizia a mim mesma: “Vou cantar hoje? OK, vamos, vou beber alguns cappuccinos e começar". Surgiu a partir de um desejo natural. Para simplificar: era mais yin do que yang, mais feminino do que masculino.

- O que é a energia masculina?

Algo como: “OK! Vamos, vamos fazer esse trabalho!”. Tentei silenciar aquela pessoa dentro de mim e ter uma energia mais suave e gentil. Encontrar paciência para esperar pela ideia certa.

- As mulheres também podem ser agressivas, raivosas, certo?

Claro! Todo mundo tem um pouco de yin e yang. Eu estava falando com relação a mim, que buscava outro equilíbrio.

- Por que você está tão visceralmente ligada à Islândia?

Na adolescência, os meus amigos queriam muito se mudar da Islândia, mas eu não. Eu queria ficar. Eu amo a Islândia. Então, com meus grupos musicais, nos ofereceram viagens. Eu gostei mais do que pensei que gostaria. Depois morei em Londres, em Nova York, mas esses lugares nunca foram a minha casa. Algumas pessoas são rurais e nasceram no meio rural, outras são mais urbanas e nasceram no meio urbano, às vezes somos rurais e vivemos na urbanidade, o que é mais complicado de gerir em um ambiente rural.

Gosto do fato do meu país não ser um lugar violento. São poucos assaltos, poucos crimes. As pessoas são muito tranquilas, calmas e ao mesmo tempo atípicas. Elas têm sua maneira de pensar, sempre fora da caixa. Os islandeses estão no absurdo, na vanguarda, com um espírito bastante aventureiro... Eu amo isso.

E gosto de lugares pequenos, porque exigem improvisação. Todo mundo faz muitas coisas. Um músico em Reykjavík muitas vezes se vê como engenheiro de som, roadie... Nós mesmos organizamos os shows, enquanto escrevemos poesia. Esta é a vida da aldeia. Não há hierarquia entre arte erudita e "arte baixa", nem escala de valores entre a música e outras expressões artísticas, você desce até o centro da cidade e se depara com as pessoas por acaso. Você vai ao bar local e conhece um rapper que também é encanador.

- A identidade, saber quem você é, é importante para você?

Não penso nisso todos os dias não, exceto nas entrevistas em que tomo muito café e finjo que sei do que estou falando! [risos]. Claro que é uma ilusão! À medida que envelheço, entendo que não gosto da Islândia porque acho que é o melhor país do mundo. Não me sinto superior aos outros, isso seria estúpido. O que eu entendo é que Reykjavík é uma capital europeia que recebe shows, festivais, cinemas, ao mesmo tempo em que está cercada pela natureza, por vulcões. Gosto deste equilíbrio entre o urbano e o rural, mais do que a própria Islândia. Eu certamente ficaria tão feliz no Havaí ou em Guadalupe! Eu amo ilhas.

- Como você conheceu o Gabber Modus Operandi (duo indonésio que mistura música gabber techno e gamelão tradicional), que está no seu álbum?

Estou sempre em busca de novas músicas. Eu passo minha vida na internet e converso muito com meus amigos. Eu faço playlists o dia todo. Eu ouço música no carro, em casa. É uma grande parte da minha vida. Também faço DJsets em festas particulares, ou quando a ocasião me parece boa.

Eu conheço o Gabber Modus Operandi há algum tempo. Eu mesma fiz a maioria dos beats do meu álbum, mas digamos que dois terços precisavam de alguma loucura. É um pouco como na pandemia: eu estava em casa, quietinha, fazia o papel de psiquiatra dos meus amigos, ou era a cabeleireira! E então, em algum momento, precisava "explodir". Não por muito tempo, porque no fundo estava feliz, criando relacionamentos mais profundos com aqueles ao meu redor. Mas, sem saber por quê, a gente precisa de um minuto durante o qual "batemos a cabeça", ou algo assim. Então, em algum momento, precisei beber muitos copos de vinho e ficar “ouaaaaaaah”.

Eu e os meus amigos nos encontrávamos na minha casa, porque tenho caixas de som muito boas – com certeza é a coisa mais valiosa da minha casa. É muito importante na vida conseguir encontrar as peças certas na hora certa, e juntá-las.

- Você está muito ligada à natureza, enquanto produz música bastante eletrônica.

A música eletrônica pode ser tão orgânica quanto guitarra, baixo ou bateria. Não há diferença entre uma guitarra e um computador em termos de natural/artificial. É apenas um instrumento. Tudo depende do que você faz com este instrumento.

O patriarcado promoveu bandas, como bandas de caras que assistem futebol e depois montam sua banda. Para as mulheres é diferente, elas não tinham lugar. Elas ganharam liberdade com os computadores, podendo produzir suas próprias músicas em casa. O computador nos permitiu tomar todas as decisões sobre nossas músicas.

Não precisávamos mais entrar no estúdio, lidar com todos aqueles caras, engenheiros de som e produtores nos pedindo para sacrificar nossos instintos. Não estou dizendo que é sempre o caso, mas acho que foi libertador.

Quando a fita VHS chegou na década de 1980, muitas artistas femininas entraram no mundo da arte com seus vídeos, como Marina Abramović e Ana Mendieta. Elas poderiam ser as chefes. Elas não precisavam mais "entrar" no mundo da arte. É o mesmo no mundo da realidade virtual, onde há muitas programadoras mulheres.

A mesma coisa aconteceu com os computadores, que permitiram que muitas mulheres criassem suas músicas. Então, quando ouço uma banda de guitarra, ouço patriarcado, cerveja e [letras sobre] peitos. É um mundo muito hostil para as mulheres.

- Como você tomou conhecimento da existência do patriarcado?

Aconteceu gradualmente. Na Islândia, há muito poucas desigualdades de gênero. Somos sortudos. As mulheres ocupam cargos de responsabilidade, também na política. Com o Sugarcubes, por exemplo, fui tratada da mesma forma que os homens. Foi quando viajamos para fora do país que senti a diferença…

Em certas situações em que fui objetificada, principalmente durante as sessões fotográficas. Fui tomada por um objeto: os fotógrafos mexeram no meu próprio corpo, me pediram para ficar em silêncio, passiva, para não me mexer, para não mostrar minhas emoções. Então eu estava fazendo exatamente o oposto: estava expressando muito as minhas emoções! Isso muitas vezes desconcertava os fotógrafos, que esperavam que as mulheres fossem passivas.

Eu coloquei a música bem alta e transformei os ensaios em espaços de liberdade. Foi ali que acho que entendi o patriarcado. Nos meus clipes, tive a chance de trabalhar com pessoas que pensavam como eu, Michel Gondry, Spike Jonze... Eles estão acostumados com mulheres fortes, não esperavam que eu me submetesse a nada. Mas tudo isso mudou muito hoje! Estou muito animada com a geração mais jovem. É importante ter isso em mente, certo?

- Com certeza! Sinto que a geração mais jovem está investindo na questão feminista, mas também ecológica.

É uma emergência! E essa é a prioridade número 1, não a número 5. Temos que resolver esse problema nos próximos cinco anos se quisermos mudar alguma coisa. Caso contrário, o resultado será apenas pior… e caro. Você deveria dizer isso para pessoas poderosas que têm dinheiro! Se você agir agora, vai custar menos do que daqui a cinco anos!

- Você ainda tem esperança?

Claro! Todos os governos reagiram muito, muito rapidamente após o Covid. Isso nunca havia sido feito antes. Foi mágico. Devemos usar a mesma urgência pelo planeta, para salvar nossos filhos, nossos netos...

- Você teve uma obsessão este ano?

Sou bastante consistente quando se trata de meus interesses. Eu sou até conservadora quando se trata dos meus gostos. Por exemplo, tento sair de casa todos os dias. Se eu tiver sorte, três a quatro horas por dia. Estou perto de montanhas, da água, da floresta. Eu gosto de estar fora. E então, estar com os amigos, com a família, cercada de música, filmes e os livros! É constante! 

- Você ainda vai dançar em boates?

Nós realmente não temos nenhuma boate na Islândia! [risos]. Temos mais cafés/bares com uma pequena pista de dança onde se pode dançar durante uma hora. Não acredito que uma boate sobreviva aqui.

- Você explicou que seu álbum está relacionado a cogumelos. Você está falando de cogumelos psicodélicos?

Na verdade, fiz um atalho para explicar minha música aos jornalistas. Meu último álbum é uma ilha nas nuvens. Quando digo isso às pessoas, elas ouvem o álbum imaginando uma ilha nas nuvens e talvez entendam mais rapidamente.

Quando falo de cogumelos, estou falando mais de clarinetes, terra, imaginando animais na terra, como toupeiras que cavam túneis, comem cogumelos e raízes. Esse é o som que eu queria criar no álbum. 

Quando falo com engenheiros de som, falo sobre um "álbum cogumelo" e eles entendem. É assim que nos falamos, principalmente entre músicos e técnicos. "Você pode me fazer soar como cinco elefantes? Algo muito pesado!". "Ok!". É um atalho útil. Talvez as pessoas pensassem: "Ah, Björk usou drogas psicodélicas por cinco meses para seu álbum!". Não! A droga neste álbum era champanhe nas noites de sexta-feira. E cappuccinos, claro.

- Com quem você gostaria de conversar hoje?

Com os meus filhos! Eu vou encontrá-los daqui a pouco, isso é bom!

- Você é muito próxima deles, né? Eles cantam no álbum...

Sim, atualmente moramos na mesma rua, o que é prático.

- Existe alguma coisa que te incomoda agora?

Gostaria que os governos e as grandes empresas reagissem mais rapidamente ao aquecimento global. Eu penso nisso todos os dias. Espero que os bilionários se movam tanto quanto na pandemia.

- Você lê muito?

Ainda tenho vários livros em andamento. Mas também ouço muitos audiolivros, principalmente quando saio para passear. Os livros têm um grande lugar na minha vida. O último que eu realmente gostei foi "Braiding Sweetgrass" de Robin Wall Kimmerer, uma autora nativo americana que estudou botânica. É muito calmo e positivo. Ela nos fala sobre as diferentes plantas, o meio ambiente.

- O que mais você faz para se acalmar quando está ansiosa?

Coisas diferentes. Acho que caminhar uma hora por dia é o melhor remédio para 70% dos nossos problemas. Talvez duas horas seria melhor. Se perco um dia de caminhada, sinto isso dentro de mim. 

- Como foi seu ano de 2022?

Brilhante, difícil, engraçado, chato, estúpido, sério. Um pouco de tudo isso ao mesmo tempo. A vida, certo?

- Você é nostálgica por certos períodos de sua vida?

Sim e não. Eu tenho que responder a esta pergunta de uma forma muito binária! Às vezes, gosto de seguir em frente, me sinto corajosa o suficiente para começar coisas novas. Mas acho importante pensar no nosso passado, perguntar a nós mesmos o que fizemos de certo, quais erros cometemos. Eu tenho essa natureza reflexiva. Eu estou tentando aprender. Mas eu ficaria entediada se passasse meu tempo querendo voltar ao passado.

- Qual é a sua relação com a morte?

Com o jazz? [Björk entende "jazz" e não "death"].

- Não! Com a morte.

Por que não [a relação] com o be-bop! [risos].

Ah, com a morte! Eu penso sobre isso, às vezes. Estou curiosa sobre como vou morrer, que doença vai me levar... É uma coisa engraçada a morte.

- Entrevista ao Les Inrockuptibles, novembro de 2022.

Foto: Santiago Felipe.

Postagens mais visitadas deste blog

Nos 20 anos de Vespertine, conheça as histórias de todas as canções do álbum lendário de Björk

Vespertine está completando 20 anos ! Para celebrar essa ocasião tão especial, preparamos uma super matéria . Confira detalhes de todas as canções e vídeos de um dos álbuns mais impressionantes da carreira de Björk ! Coloque o disco para tocar em sua plataforma digital favorita, e embarque conosco nessa viagem.  Foto: Inez & Vinoodh.  Premissa:  "Muitas pessoas têm medo de serem abandonadas, têm medo da solidão, entram em depressão, parecem se sentir fortes apenas quando estão inseridas em grupos, mas comigo não funciona assim. A felicidade pode estar em todas as situações, a solidão pode me fazer feliz. Esse álbum é uma maneira de mostrar isso. "Hibernação" foi uma palavra que me ajudou muito durante a criação. Relacionei isso com aquela sensação de algo interno e o som dos cristais no inverno. Eu queria que o álbum soasse dessa maneira. Depois de ficar obcecada com a realidade e a escuridão da vida, de repente parei para pensar que inventar uma espécie de paraí

Saiba tudo sobre as visitas de Björk ao Brasil

Relembre todas as passagens de Björk por terras brasileiras! Preparamos uma matéria detalhada e cheia de curiosidades: Foto: Reprodução (1987) Antes de vir nos visitar em turnê, a cantora foi capa de algumas revistas brasileiras sobre música, incluindo a extinta  Bizz,  edição de Dezembro de 1989 . A divulgação do trabalho dela por aqui, começou antes mesmo do grande sucesso e reconhecimento em carreira solo, ainda com o  Sugarcubes . 1996 - Post Tour: Arquivo: João Paulo Corrêa SETLIST:  Army of Me One Day The Modern Things Venus as a Boy You've Been Flirting Again Isobel Possibly Maybe I Go Humble Big Time Sensuality Hyperballad Human Behaviour The Anchor Song I Miss You Crying Violently Happy It's Oh So Quiet.  Em outubro de 1996, Björk finalmente desembarcou no Brasil , com shows marcados em São Paulo (12/10/96) e no Rio de Janeiro (13/10/96) , como parte do Free Jazz Festival . Fotos:  André Gardenberg, Folhapres

Björk nega história envolvendo o músico argentino Charly Garcia: "Não sei quem é"

O livro "100 veces Charly" compila histórias que ocorreram na vida de Charly Garcia . Um desses relatos foi muito comentado ao longo dos anos. Após uma apresentação da "Volta Tour" na Argentina, o cantor e compositor teria tentado chamar a atenção de Björk em um jantar. Foi relatado que o músico era um grande fã e queria algum tipo de colaboração musical. Estava animado em conhecê-la, e junto de sua equipe descobriu o lugar que ela estaria e foi até lá para tentar tocar com ela e outros músicos argentinos. Pedro Aznar, Gaby Álvarez, Gustavo Cerati e Alan Faena. No entanto, Björk não apareceu de imediato e ficou em seu camarim no Teatro Gran Rex. Algumas horas depois, ela quis sair para comer. Assim, uma longa mesa foi montada para ela, sua equipe e banda. E então os músicos argentinos se juntaram a eles. Apesar das tentativas de Charly de iniciar uma conversa, Björk o teria ignorado completamente, conversando apenas com a amiga islandesa ao lado dela. A história fo

Ísadora Bjarkardóttir Barney fala sobre sua carreira como artista e o apoio da mãe Björk

Doa , também conhecida como d0lgur , é uma estudante, funcionária de uma loja de discos ( Smekkleysa ), cineasta, cantora e agora atriz. Em abril, estreia nas telonas no novo filme de Robert Eggers , The Northman . Ela interpreta Melkorka , uma garota irlandesa mantida em cativeiro em uma fazenda islandesa, que também gosta de cantar.  O nome de batismo da jovem de 19 anos, é Ísadora Bjarkardóttir Barney .  "Bjarkardóttir" reflete a tradição islandesa de usar nomes patronímicos ou matronímicos . Ou seja, o segundo nome de uma criança é baseado no primeiro nome de sua mãe ou pai. Assim, "Bjarkardóttir" significa o "dóttir" – filha – de "Bjarkar". Isto é, de Björk . E Barney vem do pai Matthew Barney, que nasceu nos Estados Unidos.  Na nova edição da revista THE FACE , a artista falou sobre sua carreira. Ela vive entre Reykjavík e Nova York , onde nasceu em outubro de 2002. Confira os trechos em que citou a mãe, a nossa Björk.  " Sjón e min

Sindri Eldon explica antigo comentário sobre a mãe Björk

Foto: Divulgação/Reprodução.  O músico Sindri Eldon , que é filho de Björk , respondeu as críticas de uma antiga entrevista na qual afirmou ser um compositor melhor do que sua mãe.  Na ocasião, ele disse ao Reykjavík Grapevine : "Minha principal declaração será provar a todos o que secretamente sei há muito tempo: que sou melhor compositor e letrista do que 90% dos músicos islandeses, inclusive minha mãe".  A declaração ressurgiu no Twitter na última semana, e foi questionada por parte do público que considerou o comentário uma falta de respeito com a artista. Na mesma rede social, Sindri explicou:  "Ok. Primeiramente, acho que deve ser dito que isso é de cerca de 15 anos atrás. Eu era um idiota naquela época, bebia muito e estava em um relacionamento tóxico. Tinha um problema enorme e realmente não sabia como lidar com isso. Essa entrevista foi feita por e-mail por um cara chamado Bob Cluness que era meu amigo, então as respostas deveriam ser irônicas e engraçadas. Eu