Este artigo faz parte da AnOther Magazine, edição de fevereiro de 2023:
Björk: Estou muito honrada em fazer isso, porque estou extremamente animada em conhecê-la como musicista, performer e criadora de coisas neste mundo.
Shygirl: Lembro que depois de termos sido apresentadas pela primeira vez por Arca por e-mail, antes da Covid, eu mandei uma mensagem bêbada para você uma noite e contei sobre meu próprio relacionamento com sua música, como meu pai me deu o single "Hunter" de presente.
Foi um single para mim, porque ouvi aquela música repetidamente. Ele costumava tocar na noite em um clube e as pessoas deixavam os CDs para trás, então ele os trazia para mim para que eu escutasse no meu Walkman. "Hunter" foi minha paisagem sonora por um período. Sempre ouvia música pensando que estava em meu próprio videoclipe - ou quando estava lendo, para criar uma atmosfera. Eu senti como se meu pai estivesse me enviando mensagens com essas músicas.
Seu próprio sentimentalismo, emoções e vulnerabilidade. Agora olhando para trás, vejo que isso foi muito precioso para mim. Esse cara negro grandão de 1,80m me presenteando com músicas de Björk, Róisín Murphy e Destiny's Child – como se ele estivesse abrindo espaço para mulheres emocionais.
B: E então, quando nos conhecemos pessoalmente, você me mostrou uma parte incrível do Soho, o que foi ótimo porque eu frequentava muito aquele lugar nos anos 90, mas já fazia um tempo.
S: O jantar com Sega Bodega foi neste lugar onde havia apresentações ao vivo, como engolidores de espadas a cada poucos minutos. Eu não sabia que seria tão movimentado, mesmo tendo escolhido o local. Ajudou a quebrar o gelo.
B: E então fiquei emocionada porque quando disse: "Qual é o melhor lugar para ir agora?", você falou: "Vamos para casa e fazer um DJset, com canções uma para a outra" – o que sempre acaba sendo a melhor escolha. É uma coisa de musicistas quando temos pessoas tocando músicas pela metade da noite, e então ficamos um pouco bêbados e mandões, querendo controlar [o som], para ouvir o que queremos.
S: Acho que nós duas somos DJs de uma maneira parecida. Algo sobre selecionar e misturar gêneros musicais, tocar o que amamos de uma forma divertida. Nós apenas apreciamos as canções, e os DJsets são uma saída para isso.
B: Eu concordo! Com orgulho, tenho chamado a mim mesma de "a David Attenborough dos DJs". Eu sou mais como uma musicóloga: "Eu quero te mostrar uma formiguinha". Daí vou de uma faixa de R&B da Malásia a uma música clássica do norte do estado de Nova York a algumas canções sujas de trap de Paris. Eu gosto de tê-las uma após a outra porque cada música se torna mais ela mesma.
S: Acho que é daí que vem o rótulo "futurismo", quebrando essas regras.
B: "BB" é uma das minhas músicas favoritas. Que gênero é esse? Neuro trap?
S: Tem influências de garage também. Adoro quando as pessoas me perguntam qual é o gênero musical, porque é a última coisa em que penso.
B: Eu amo como a música é sem gênero. Você mencionou antes que ouve música enquanto lê. Em entrevistas, falou sobre querer "abraçar" romances em sua música, como "Tess of the d'Urbervilles" de Thomas Hardy. Você quer ser a English Rose? Quais são seus livros favoritos? Você gosta de ficção científica?
S: A leitura é onde minha relação com a música começou, e onde a vida começou. Eu era uma grande leitora quando criança e me perdia nos personagens, tentando encontrar paralelos com o mundo exterior através das páginas. Foi assim que aprendi a entender as pessoas e a mim mesma. E na música posso ser a English Rose ou a vilã, ou as duas coisas ao mesmo tempo.
Posso ser todas as personagens diferentes, mas amo a anti-heroína e amo Tess, porque não há final feliz e há realismo nisso. Na vida real, não se trata de esperar um final feliz, mas de apreciar a jornada pelas partes que a gente não esperava.
Com ficção científica, prefiro filmes. Leio mais romances. Eu gosto de Anne Rice. "As Crônicas Vampirescas", coisas sobre amor, sexo e relacionamentos, pelos quais sou particularmente apaixonada. Eu gosto da metáfora do vampiro em relação ao amor, especialmente entre homens, porque aquele retrato homoerótico era subversivo em contraste com o que eu estava cercada enquanto crescia. Para mim, qualquer coisa que pareça real deve ser real.
B: Você não é apenas uma rapper e um cantora, mas você se torna todas essas personagens diferentes,e isso parece que vem da literatura.
S: Acho que é por isso que tenho gostado tanto de me apresentar recentemente. Parece teatral, especialmente depois da pandemia, fazer os shows da maneira que eu os imaginei por tanto tempo. Ainda estou aprendendo a ser uma performer, porque até agora minha carreira estava em desenvolvimento.
B: Eu pensei em te perguntar sobre sexualidade, mas você é muito questionada sobre isso. Eu gosto mais da palavra "sensualidade" do que "sexualidade", especialmente como rapper ou cantora. É mais interessante como você brinca com a sua voz no microfone e o ar ao redor dele. Você é uma oradora sensual!
S: Eu amo ser percebida como uma pessoa sensual e sexual, porque eu sou isso e é bom celebrar isso. Devemos ser capazes de falar sobre isso e de todo o resto, reconhecer a nossa presença e dizer que há mais.
B: Falando em mais, eu queria te perguntar sobre humor. Às vezes, acho que as pessoas não percebem quando estou zombando do meu trabalho. Vejo muito humor nas suas coisas, por exemplo, a capa do seu EP "Alias", que é hilária. Você acha que há humor e que as pessoas entendem?
S: É meio a meio – as pessoas fazem e não fazem isso, e eu gosto. A mensagem está aí para aqueles que estão abertos para recebê-la. Mas estou sempre rindo de mim mesma, da arte em geral. Acho engraçado que as pessoas me ouçam ou me deem espaço, que minha expressão tenha uma plataforma. Portanto, é importante nem sempre se levar muito a sério. Especialmente com "Alias", cuja capa é um comentário sobre sair do lockdown e me colocar neste espaço onde seria percebida, me colocando para consumo. Eu preciso achar um pouco engraçado para poder fazer isso!
B: Como é ser uma documentarista emocional? Eu tinha a sua idade quando percebi que esse é o meu músculo principal, e foi uma surpresa. Os sentimentos são como o clima e, quando escrevemos, precisamos estar muito atentas ao estado de espírito. É importante se livrar da velha bagagem "emo" para ter espaço para pensar e sentir?
S: Totalmente! Sou muito grata porque sempre fui alguém que sente as coisas profundamente e é regida pelas emoções, que determinam o que devo ou não fazer, até mesmo quem devo ser. Sempre fui bastante autorreflexiva. Agora tenho um canal para todas essas emoções e reflexões, e uma maneira de validá-las. Não importa o que eu passe, como me sinta, tudo tem um lugar e um propósito agora porque significa que posso criar algo, crescer, progredir. Tem um produto quantificável. Este álbum foi um espaço onde eu estava me esforçando para ser mais vulnerável e revelar mais coisas, não apenas para o público, mas para mim mesma.
B: Se você pegar faixas como "Rude" de "Cruel Practice", ou qualquer coisa de "Alias", elas são bastante difíceis, e então há uma transição para a sensibilidade em "Nymph". Você acha importante defender seu lado sensível e seu lado techno mais pesado?
S: Depois dos dois primeiros EPs, comecei a entender a impressão que estava causando e pensei: "Ok, mas houve tanta coisa antes para eu chegar a essa bravata que estou dando a você. Eu já tive que passar por um espaço delicado, apenas esqueci de informá-los sobre isso".
Na verdade, eu só queria me apresentar. Mas para ter uma visão mais ampla de quem eu sou, precisei voltar ao início do meu processo, o lado mais vulnerável. Não sei se foi consciente ou apenas seguindo o fio do meu interesse. Meu interesse deve ser despertado antes que eu possa considerar a escrita interessante para outra pessoa. Nunca fui boa em escrever diários, porque me parece repetitivo. Eu preciso entregar o evento de uma forma que pareça nova para mim, como se estivesse experimentando novamente pela primeira vez. Essa é a maneira mais clara de pensar em meu processo criativo.
B: Estou por aí há mais tempo – um bilhão de anos – mas consigo pensar em momentos em que parecia muito natural, aquela bravata. Para "Homogenic", fiz uma turnê inteira em que minha arrogância estava em evidência, e depois fiquei tão entediada quando acabou a turnê que naturalmente desabei no oposto com "Vespertine", que era muito gentil e sussurrado. Às vezes, a gente vai naturalmente para o outro extremo!
S: A presença de trabalhos anteriores ao meu, como o seu e de muitos outros artistas que me inspiraram, me ajudou a relaxar porque já existe essa ótima conversa e estou apenas retomando de onde pararam. Sempre há algo que parece um pouco familiar, porque tudo foi feito ao longo dos tempos. Com "Nymph", é divertido adicionar e modernizar a cada vez.
No remix de "Ovule" há a letra, "I can’t even hear you calling", que significa algo como: "Não consigo nem perceber o alcance do seu amor, é muito vasto para minha percepção". Com minhas composições eu ecoo o clima de um período que estou vivendo, e trabalhando em seu remix eu estava nesse mesmo estado de espírito, então falam um com o outro.
B: Nós nos conectamos [em "Ovule] com nossas expectativas sobre o amor, não em ficar presas querendo algo particular de alguém, para permitir que sejamos generosas à nossa maneira.
S: Foi algo único que a gente pôde conversar antes mesmo de nos conhecermos, com nosso próprio trabalho falando por si, mas depois continuamos trabalhando juntas. Isso amplia o que a música significa para mim, um belo espaço onde podemos estender a mensagem de quem somos como pessoas.
B: Exatamente! Ainda sinto que tenho 1.000 músicas para escrever e nunca terminei. É algo tão vasto, é emocionante. Eu queria perguntar sobre o equilíbrio nas colaborações musicais. Eu realmente gosto quando há uma fórmula interna. Dar um ao outro coisas muito opostas, ou igual ao que recebem. Isso é importante para você?
S: Eu odeio trabalhar sozinha, porque minha introdução à música veio através da colaboração e eu sei como isso é bom. Adoro como posso ter uma ideia em mente ou algo que estou tentando desenterrar e outra pessoa me entende, ou não, mas revelamos algo juntos à medida que avançamos, como arqueólogos.
B: Nós duas também participamos da administração de nossas próprias gravadoras, o que para mim removeu aquela expectativa da "chegada de um cavaleiro em um cavalo branco", que muitos músicos têm de gravadoras.
S: Eu realmente gosto de entender as coisas! Eu odeio entrar em um lugar e ter alguém explicando tudo. Prefiro descobrir algo sozinha. Acho que isso ficou em mim por meu pai, porque se eu fizesse uma pergunta a ele, ele diria: "Procure". As pessoas estavam falando comigo sobre assinar [um contrato] e eu fiquei tipo: "Eu nem sei o que uma gravadora faz. Como sei que eles estão me ajudando corretamente?".
Tive a sorte de estar cercada por pessoas como Sega e Coucou Chloe fazendo música. Estávamos fazendo isso naturalmente e por nós mesmos. Pensamos: "Por que não damos um nome a isso?". Fizemos uma gravadora mesmo sem saber o destino final, mas com uma intenção: apoiar e nutrir uns aos outros e criar espaço para outras pessoas com quem queremos compartilhar nossa energia.
B: Nossas mães tinham 19 anos quando nascemos. Eu me pergunto se ter pais mais jovens explica o autodidatismo. Que papel você desempenha em sua família? É a pessimista, otimista, palhaça, pacificadora, realista, sonhadora? Ou todos os itens acima?
S: Há algo único em ter esse espaço para crescer com seus pais quando eles são tão jovens. Tenho uma irmã mais nova com uma diferença de idade de 15 anos, e vejo minha mãe de maneira muito diferente de como ela a vê. Naturalmente, minha mãe tem mais experiência agora, mas sou grata pela mãe que ela foi para mim porque amo quem sou hoje.
Sou uma grande personalidade dentro da minha família. Sou realista, mas minha realidade pode ser interpretada como o sonho de outra pessoa, então há aspectos de sonhadora e pacificadora. Tive que dar conselhos aos meus pais sobre coisas que não tenho experiência real, mas pelas quais tenho empatia e, com o tempo, isso se provou como algo certo.
Isso mudou a forma como me movo pela vida, porque essa validação me deu confiança para dar conselhos aos amigos. Não me importo de estar errada e convido essa conversa. Acho que é por isso que não tenho vergonha de iniciar uma conversa em geral.
B: Que tipo de paisagem lhe influenciou espacialmente enquanto você crescia? Eu sinto isso em você como musicista. O espaço urbano, mas também muita natureza. É um sentimento.
S: É livre estar lá fora e, vindo de um ambiente não muito rico, sempre fui encorajada a fazer uso do que tinha disponível. Eu passava todos os verões no sul do País de Gales e minha tia morava em Kent, então a visitávamos. Meu irmão e eu brincávamos na floresta e minha mãe não conseguia nos encontrar.
Para mim, a natureza representa abertura, liberdade selvagem. A cidade parecia previsível e pequena. Estranhamente, o campo parecia grande e misterioso, cheio de possibilidades. Quando comecei a fazer música, fui visitando mais minha avó no Caribe – aquele era um lugar de reflexão e mistério.
Isso me lembrou que meu mundo não é o único mundo. Foi fundamental no meu processo de escrita ter essa reflexão nesses espaços, deixar espaço para o mistério da interpretação. Acho que foi assim que me inspirei na natureza. Há espontaneidade! A gente não pode controlar todos os aspectos.
B: Isso é lindo! Você traz um ângulo tão novo como oradora e dona confiante de suas paixões e de sua existência. Mal posso esperar para ver o que você irá fazer a seguir.
Após o remix de Sega Bodega para "Ovule" com Shygirl, Björk retribuiu o favor e remixou uma das faixas de "Nymph", o álbum de estreia da cantora. A nova versão de "Woe (I See It From Your Side)" conta também com vocais da islandesa.
Fotos: Charlotte Wales e Vidar Logi.