Björk, que canta no Brasil em 5 de novembro, diz que o novo álbum "Fossora" é "uma toca dentro de casa". A cantora islandesa é uma das principais atrações do Primavera Sound, festival que acontece em São Paulo.
Björk desceu do céu e pousou na terra. A cantora islandesa cavoucou um buraco aconchegante, aninhou-se dentro dele e escreveu seu novo álbum, "Fossora". É um disco sobre espaços subterrâneos, cidades feitas de fungos e o retorno do nosso corpo à terra. Em entrevista por telefone para Folha, a artista descreve o disco como "uma toca dentro de casa". "Você está tão à vontade que fica tempo o bastante para criar raízes", diz. A ideia reflete sua a própria jornada de retorno à Islândia, onde vive em definitivo depois de décadas no exterior.
A cantora, que vem ao Brasil em novembro como headliner do Primavera Sound, busca imagens para falar de sons. Vai escavando montanhas e lapidando metáforas certeiras. "Fossora" soa mesmo como estar com o pé no chão, sentindo a terra úmida entre os dedos. O título evoca seu significado. É o feminino do latim "fossore", aquele que escava.
Björk consegue transmitir essa sensação de aterramento por meio da escolha inusitada de instrumentos. A pedra angular do álbum é um sexteto de clarones, que são clarinetes mais graves. "Queria pousar no solo e ir fundo", diz. É o oposto do som de seu disco anterior, "Utopia" (2017), que ela descreve como "uma cidade nas nuvens" marcada por sons agudos. "Era como flutuar no céu ouvindo flautas".
Em seus últimos trabalhos, Björk surpreendeu ao inventar novos instrumentos musicais. Foi o caso, em especial, de "Biophilia", lançado em 2011. "Se você não está feliz que algo não existe no mundo, você precisa criá-lo", diz. Em "Fossora", no entanto, a cantora canaliza sua criatividade não para construir novos instrumentos, mas para pensar em novas maneiras de utilizar os que já existem.
"Eu estava a fim de pegar um instrumento para o qual é difícil escrever e tentar criar cores diferentes com ele", conta Björk. Ela explica que, na canção "Atopos", usou os clarones para pintar um ritmo agressivo. Em "Victimhood", buscou um território mais melancólico e romântico. Já em "Fungal City" soprou tons alegres. "Se deu certo, já é outra conversa", diz.
Björk, uma introvertida assumida, fala com uma modéstia que parece sincera. "Acho que em todos os meus álbuns eu sempre tento voltar à escola de música. Sempre tento aprender ao menos um software novo e fazer algo que nunca fiz", diz. "Todos somos estudantes. Sábios e estúpidos. Não tem a ver com a idade".
"Fossora" tem mesmo essa coisa de estar externo ao tempo, de ser um álbum maduro e ao mesmo tempo inocente. O disco mescla faixas leves, como "Atopos", com outras duríssimas, como "Ancestress". "Muitas das canções são calmas nos primeiros três ou quatro minutos e, de repente, no último minuto, você se levanta e dança, e depois se senta de novo", Björk explica.
É um reflexo dos tempos. Björk passou a pandemia na Islândia caminhando em praias gélidas. Ela tinha a alegria de receber amigos em casa e transformar a sala de estar em pista de dança, com música eletrônica pesada. Mas viveu também a dor de perder sua mãe, Hildur Rúna Hauksdóttir.
Duas faixas de "Fossora" homenageiam Hildur. Na oração funerária "Sorrowful Soil", Björk diz que "em solo triste cavamos nossas raízes". No epitáfio "Ancestress", lamenta que "quando você morre, leva consigo o que você deu". A melancolia, nesse trecho, é areia escorrendo pelos dedos. Mas a cantora diz que não estava em busca de catarse, de curar feridas. "Estava mais preocupada em celebrar a vida dela, dar crédito pelas coisas boas que fez", afirma.
Uma frase, em especial, corta fundo em "Sorrowful Soil". Björk repete à mãe, diversas vezes: "Você se deu bem. Você deu seu melhor". Ela explica que teve a ideia há alguns anos, quando visitou o avô no hospital e leu um panfleto com conselhos para familiares de doentes terminais.
"Antes de morrer, as pessoas querem saber se elas se deram bem. Tentei falar isso para a minha mãe, mas talvez não tenha sido o suficiente", diz. "Às vezes, você coloca na música algo que não teve a oportunidade de expressar".
Pensando na frase, Björk se deu conta também de que havia musicalidade. Era um mantra. "O ritmo era muito interessante. "Você se deu bem, você se deu b-b-b-b-bem". Como se eu estivesse tentando enfiar isso na consciência dela antes que partisse".
Como em seus outros álbuns, Björk presta atenção não só na música, mas também em como embrulhá-la em imagens. Como uma carta de tarô, a capa de "Fossora" está repleta de símbolos. As cores escuras remetem à terra. O fato de que está ajoelhada sinaliza sua conexão com o solo. Todos os elementos visuais estão embaixo dela, marcando sua descida do céu para a terra.
"Fossora" é o décimo álbum de Björk. Celebrando o marco, ela lançou também uma série de podcasts chamada "Sonic Symbolism", em que conta a história de cada um de seus discos. Em geral, a cantora tem falado bastante também sobre o passado. O repórter da Folha, Diogo Bercito, lembrou, inclusive, de como ela chegou à música brasileira, que marcou sua carreira. A faixa "Human Behavior" tem um sample de Tom Jobim, "Isobel" foi inspirada por Elis Regina e Björk encontrou Milton Nascimento quando esteve no Brasil. As fotografias dos dois juntos volta e meia reaparecem nas redes.
"Uma das razões pelas quais tenho afinidade com o Brasil é porque consigo ouvir a natureza nos sons, que são ao mesmo tempo modernos e relevantes", diz. "São músicas que você pode dançar, mas as letras são alta poesia".
Björk já ouvia música brasileira nos anos 1980, quando era raro um vinil chegar à isolada Islândia. Juntava dinheiro o inverno todo para ir ao exterior. Trazia álbuns para a ilha e saía emprestando para os amigos. "Às vezes só havia uma cópia circulando, e geralmente era no momento errado. Se um disco saía em 1976, a gente ouvia em 1981, e estava pouco se lixando", diz. "Eu meio que gosto disso. Os meus CDs favoritos eu ouvi no ano errado. Um bom álbum é um bom álbum".
O show no Primavera Sound marcará a volta de Björk aos palcos do Brasil após uma ausência de 15 anos. Ela também conversou com O Globo sobre isso:
"Estou animada, vou ao Primavera com o espetáculo "Orkestral", com minhas antigas canções e músicos locais, sem tantos elementos visuais, bem pé no chão", anuncia ela, que também tem apresentado no exterior o show "Cornucopia", com sofisticado aparato visual, músicos e muitas fantasias e as canções de "Utopia" (seu álbum anterior, de 2017).
Ela admite que não tem visto Milton Nascimento há um bom tempo. A cantora diz guardar boas memórias de 2004, quando passou uma temporada em Salvador: "Vi as pessoas se preparando para o carnaval, foi fantástico!". Hoje, ela diz sentir muito o que está acontecendo com a Floresta Amazônica, devastada por queimadas ao longo dos últimos anos: "É um completo desastre, fico muito triste quando leio as notícias. Espero que um dia os políticos deem um melhor tratamento à questão do meio ambiente".
Sobre a entrevista para Folha, o jornalista Diogo Bercito escreveu no Twitter: "Já é raro realizar um sonho. Tive a sorte absurda de realizar o meu duas vezes". Em 2019, ele já havia falado com ela. 💓
Durante o bate-papo com Silvio Essinger para O Globo, Björk comentou sobre as razões de ter reunido os filhos Sindri e Ísadóra em "Fossora":
"Uma das razões é que meus filhos estão crescidos, e agora falamos de igual para igual (risos). E teve o fato de a minha mãe ter morrido, o que deu início a um outro capítulo na história de nossa família, em que não temos mais diferenças. Além disso, teve a Covid, que nos manteve juntos por três anos, e por mais tempo do que de costume. Achei que seria estranho não tê-los no disco", explicou.
Sindri, de 36 anos, já era conhecido por seu trabalho como músico. E Ísadóra deu os seus primeiros passos no cinema este ano, ao atuar ao lado da mãe no filme "The Northman", de Robert Eggers.
"Acho que Ísadóra é sua própria pessoa, com certeza. Consigo ver nela coisas belas de seu pai e também minhas, mas o importante é a sua individualidade. Ela é muito independente e autossuficiente, muito trabalhadora, e fico feliz que a sua voz seja bonita e diferente da minha. Isso é algo bom, dá mais espaço para que ela seja quem ela é", festeja Björk ao responder.
A cantora e produtora reconhece que, de certa forma, com a morte da mãe, ela se tornou a matriarca da família: "Mas em muitos sentidos eu já era a matriarca desde a adolescência, não foi uma grande mudança para mim".
Na canção “Ancestress”, dedicada à mãe, Björk canta versos reveladores: "Ela tem um senso idiossincrático de ritmo/dislexia, a forma livre definitiva. Ela inventa palavras e acrescenta sílabas/caligrafia, linguagem própria": "Minha mãe tinha dislexia, e quando eu era criança estava sempre tentando ensiná-la a falar, estava sempre corrigindo ela, o que era realmente estranho. Preferia que alguém tivesse dito naquela época para que eu deixasse minha mãe ser quem ela era", confessa.
Com mais idade, porém, Björk começou a entender melhor a condição de Hildur Runa e a ver que "a dislexia não é uma incapacidade, é apenas um ponto de vista diferente. As pessoas com dislexia têm talentos especiais, seja para a escultura ou a animação de jogos de computador em 3D. Minha mãe, por exemplo, criou sua própria caligrafia, adicionando sílabas às palavras. Ela não dizia "Jack Nicholson", mas sim "Jack Nichololson", o que eu acho bem melhor. Minha mãe nasceu em 1946, numa época em que se você tinha dislexia as pessoas tentavam fazer você se sentir como se fosse estúpida, era terrível. Há muitas formas de absorver o mundo", explica.
Em outras canções de "Fossora", como "Freefall", "Ovule", "Atopos" e "Fungal City", Björk se debruça sobre um tema que permeia todos os seus álbuns: o amor: "Mas cada uma dessas canções de amor tem um ponto de vista diferente. Estou sempre tentando aprender e me tornar uma amante melhor, mas algumas das letras são sobre como eu espero que a outra pessoa também aprenda e cresça (risos). No fim das contas, estamos todos sempre pensando e falando de amor. O canto é algo que humanos e muitos animais partilham, uma forma muito natural de expressar o amor e a saudade", defende ela.
Björk tem definido "Fossora" como o seu "álbum do cogumelo": "Esta era uma maneira de descrever o som, um atalho visual para quem não é músico. Por exemplo: meu álbum anterior, "Utopia", eu chamaria de "uma ilha de ficcção científica nas nuvens". Aquele foi um disco muito muito cheio de ar, por causa das flautas. Todos os sons nele eram "soprados", como o vento. "Fossora", por sua vez, é como se eu estivesse aterrissando, ele está bem fincado no solo. Como escolhi fazê-lo com seis clarones e uns bumbos bem robustos, me veio a ideia do cogumelo. Ele não é um disco afiado e limpo, é mais gordo e cabeludo. Eu sampleei minha voz e criei uma escala de quatro oitavas no meu laptop, para poder criar as estruturas de acordes. Depois, coloquei tudo no Sibelius (software de produção musical) e escrevi os arranjos para cordas, trombones e clarinetes. Uma vez que tudo estivesse gravado com os músicos, eu ia para o ProTools (software de edição musical) trabalhar nos beats".
Alguns dos beats do disco, por sinal, foram feitas com Kasimyn, do duo Gabber Modus Operandi, de Bali, que a cantora ouviu muito durante as pequenas raves que promoveu em casa, na Islândia:
"Nem era minha ideia inicial incluí-los no álbum, só que percebi que muitas das canções do disco, mais para o final, dobravam o andamento. Tentei fazer as programações rítmicas eu mesma, mas aí me dei conta de que, quando sou inspirada por alguém, é melhor não tentar copiar, mas chamar para participar do projeto. Adoraria ter encontrado Kasimyn pessoalmente, era o que eu teria feito, não fosse a Covid. Ele me mandou os beats e eu as adicionei no encerramento das faixas. Adoro o equilíbrio entre tecnologia e natureza da música do Gabber Modus Operandi, esse techno biológico é algo que você só encontra em lugares como Islândia, Bali e Brasil".
A gente está te esperando, Björk. 💓
- Matérias publicadas em setembro de 2022.
Foto: Vidar Logi.
Clique AQUI e confira a entrevista de Björk para Rádio Rock, com legendas em português.