Foto: Santiago Felipe |
Em Cornucopia, nova série de concertos de Björk, o público é convidado a embarcar em um show teatral, com base em uma utopia que a artista classifica como possível, em meio a necessidade de ação ambiental.
"Eu pessoalmente gostaria de dizer que estou tentando esculpir maneiras de expressar o lado espiritual no campo digital", contou em nova entrevista ao Dazed. “Isso é muito clichê? Acredito que existe uma enorme necessidade de se encontrar um lugar para a alma em nossa paisagem global. Sinto que a acústica (desse espetáculo) é algo ainda mais íntimo, pois nós queríamos isso e encontraremos um milhão de diferentes pontos de contato entre essas duas coisas. Quanto mais digital tivermos, mais pele nua e crua iremos querer.
Em geral, os meus álbuns foram escritos a partir de diferentes locais da minha mente. Por exemplo, o Biophilia é uma espécie de escola de música indo ao museu de ciências, e o Vulnicura uma ópera de tragédia grega da (história de) uma pessoa. Já Utopia foi talvez o mais óbvio: é um lugar (em específico), com um conto de ficção científica inserido, então eu sabia que precisava de um cenário teatral e encenação para as músicas serem 'semi-acreditáveis'. Essas faixas são uma tentativa de se imaginar uma trilha sonora para uma futura ilha, um lugar de esperança".
A escolha do The Shed como local das apresentações foi importante para o andamento do projeto. Björk o selecionou levando em consideração seu histórico de colaborações com o fundador e diretor do lugar, Alex Poots, com quem já havia trabalhado no Manchester International Festival, em 2011: “Ele é alguém que tem uma atitude muito favorável em relação a ideias idiossincráticas, além de não ter interesse em diferenciar o que é a "alta e baixa arte". Este escocês parece entender que as coisas ou dão certo ou não, e que categorias de música e tipos de arte não funcionam mais. Essas coisas precisam ser quebradas!".
Na reportagem que fez sobre Cornucopia, a jornalista Erica Russel pontuou algumas impressões interessantes do show, incluindo a bela abertura, que Björk classificou como um "luxo incomum". Para ela, nos 100 minutos de performance, a islandesa não se posicionou como maior do que a soma das partes da produção. Todos os componentes e artistas trabalharam em equidade 💖 Entre os highlights, a entrada do coral The Hamrahlid Choir pela plateia, os efeitos de áudio impressionantes de Manu Delago com água e a execução de Body Memory, com direito a um "duelo" de flautas: talvez "o primeiro do mundo", ironiza a cantora animadamente.
Foto: Santiago Felipe |
"Tabula Rasa" significa ter uma página em branco e limpa, e acho que é isso que nossos filhos merecem de nós. Embora eu saiba que nunca será assim, pois os pais sempre colocam suas marcas em seus filhos, mas estou convencida de que é importante tentar limpar a nossa influência o tanto quanto possível e tentar deixá-los com uma bagagem mínima". (Björk em entrevista ao Mujer Hoy, janeiro de 2018).
"Eu sou muuuito grata pelos meus 18 meses de trabalho em Cornucopia com o incrivelmente talentoso Tobias Gremmler. Essa foi uma viagem através de descrições abstratas de pequenas seções de canções, com detalhes e nuances, ligações pelo skypes, textos e duas pessoas inquietas na ambiguidade do ponto de encontro entre uma música e uma imagem em movimento". (Björk em publicação nas redes sociais).
Divulgando as apresentações, foi lançado hoje, 10 de maio, um videoclipe de Tabula Rasa, dirigido por Tobias Gremmler. Para o registro, o rosto da cantora foi filmado em um iPhone X. Se trata de uma das projeções do novo show. Para o Dazed, ele comentou sobre a experiência: “Para criar o vídeo, me inspirei profundamente na música e na letra dessa canção. A transformação visual de Björk em flores 'faunísticas' e paisagens montanhosas incorpora o conceito utópico de uma coexistência harmoniosa entre a natureza e o ser humano baseada na empatia".
Para Björk, as duas coisas poderiam conversar em poucas palavras, mas com muita compreensão.
"Esse show tem um palco apropriado e uma passarela, por isso tem como objetivo entreter, para servir, talvez, um desiludido pós-mudança climática. É meio que tentar ser um sonho que se pode assistir de longe, então acho que a relação entre o público é diferente. Eu queria que a coisa toda fosse extremamente digital e extremamente acústica, muito "faça você mesmo". Algo do tipo: "Vamos começar de novo em um novo mundo, mas também teremos equipamentos de alta tecnologia movidos a energia solar com a gente!". Uma viagem de acampamento de ficção científica.
Eu trabalho bastante sozinha, caminhando por aí e escrevendo minhas melodias, trabalhando em letras, editando músicas, trabalhando em arranjos, mixando e assim por diante. Então, quando colaboro com alguém e convido para a minha casa, anseio por isso imensamente e simplesmente vou em frente. Obviamente, é também muito sobre o timing e a pessoa certa, mas talvez filosoficamente, como uma matriarca, eu não concordo com a ideia do "gênio solitário", o mestre. É fácil trabalhar sozinha. O verdadeiro desafio é chegar e comunicar de forma genuína".
Planejando os figurinos e o palco de Cornucopia |
Em bate-papo com a Vogue, Chiara Stephenson, cenógrafa do show, falou sobre a concepção visual do espetáculo:
"Acredito em fazer um trabalho que agrade a todos os tipos de público. Muito do melhor design de teatro é menos sobre formas arquitetônicas ou decorativas e mais sobre a criação de um espaço que funciona com a alquimia das performance ao vivo de cada indivíduo. Os artistas reagem ao que está ao redor deles, seja um microfone, uma cadeira, um feixe de luz ou uma bacia com água. É no encontro da encenação e do intérprete que algo verdadeiramente dinâmico emerge. Eu realmente não vejo uma divisão entre a chamada 'alta e baixa cultura'. É estranho que, dentro da indústria da arte e design aparentemente liberais, ainda encontremos um esnobismo extremo entre o que é considerado bom e ruim. Prefiro não fazer isso. Acho que todos os tipos de arte e performances devem ser livres, e minha carreira se beneficiou enormemente da liberdade de tecer entre os diferentes mundos do teatro, da música, da exposição, do balé e etc. Björk é um exemplo brilhante de uma artista que tem a habilidade e confiança de apresentar seu trabalho dessa forma. Espero que outros na indústria da música sintam que podem fazer algo semelhante. Por outro lado, acho que o teatro também deveria se levar um pouco menos a sério às vezes!
Björk queria que Cornucopia fosse intensamente íntimo, como se a platéia pudesse senti-la sussurrando em seu ouvido. Um desafio que exigiu uma simbiose criativa de som e luz. Através de uma estreita colaboração com outros departamentos, trabalhamos para trazer essas mudanças até algo épico. A incrível videoarte de Tobias Gremmler está no centro disso, voando da macro para a micro com mudanças caleidoscópicas que levam o público em uma jornada com e através da Björk. O show conta com uma ambientação de som que sincronizada com a iluminação, dá a sensação de que o próprio palco está voando ao redor do público.
As formas naturais estão no centro deste show. Seja a intrincada beleza dos fungos ou a grande maravilha do cosmos, não havia parte da realidade grande ou pequena demais para ser considerada. Trabalhar com essas formas e forças - luz, vento, som - alinha o processo criativo com aquilo que mantêm a vida, sem mencionar os materiais de que precisamos para concretizar nossas ideias. A música de Björk é tão pessoal e emocionalmente crua, que nos leva a pensar em nossas próprias experiências de vida, mas também sobre a condição humana em geral. É fascinante caminhar entre essas perspectivas.
Ela é fiel à sua arte e seu modo de ser se mantém fiel à sua maneira de se apresentar. Ela não usa jeans e camiseta, ou pelo menos não que eu tenha visto; ela usa obras de arte, e desta vez se apresenta com outra máscara incrível criada por James Merry. Björk é alguém que parece não desenhar linhas entre arte e vida. Ela é sua arte, tanto quanto seu trabalho é inseparável dela".
Para o Architectural Digest, Stephenson afirmou: "(Estão nesse show) o lado sensual da natureza, suas curvas, formas orgânicas e feminilidade. É como uma exploração de perspectiva. Estamos usando materiais não convencionais para projetar, não apenas exibindo imagens em uma tela. Esse tipo de videoarte é um exemplo incrível de como a tecnologia e o digital podem aprimorar os temas da natureza que conhecemos e levá-los a um novo nível que aguça os sentidos mais do que um passeio no parque. É meio etéreo, eu acho. (Sobre as estruturas principais do palco), acredito que a fragilidade dos materiais que usamos é surpreendente. Frequentemente, as de shows de rock, por exemplo, são meio grandes, sofisticadas e engenhosas; Em "Cornucopia", se tem uma sensação muito diferente e mais delicada sobre isso, uma sensibilidade teatral".
E, embora a cenógrafa certamente tenha conseguido criar o mundo dos sonhos de Björk, ela atribui à ela grande parte dos créditos pelo belo resultado final: "Você poderia colocar Björk em um palco vazio com uma lâmpada e ainda assim seria um bom show. Acho que esperançosamente estamos aprimorando tudo o que ela é, e tudo o que a música em si é".
Emocionado, Olivier Rousteing, que assina alguns dos novos figurinos, falou no Instagram sobre a experiência de colaborar com a islandesa: "Eu tenho que dizer mais e mais, acredito que o céu é o limite. Fui abençoado em minha jornada por trabalhar com os talentos mais incríveis que sempre me inspiraram. Björk sempre fez parte do meu sonho mais profundo de pessoas com quem eu queria trabalhar. Seu estilo, seu talento, seu carisma, sua beleza e seu perfeccionismo são únicos. Não encontro palavras para traduzir as emoções que sinto para explicar o que significou trabalhar durante esses últimos meses com ela". Em seu site oficial, ele continuou dizendo: "Depois de ver as imagens da minha nova coleção de roupas, a Björk me procurou e me perguntou se eu estaria disposto a construir o espírito desse meu projeto para sua turnê, explicando que havia ficado intrigada com as formas das silhuetas das minhas peças. Ela me desafiou a aperfeiçoá-las para que pudessem se encaixar no mundo de sonhos que ela e seus músicos irão viver nos palcos".
Para o Dazed, o artista falou: “Quando eu tinha 14 anos de idade e fui ao cinema para assistir a um filme de Björk, nunca teria esperado que um dia trabalharia com ela. Quando recebi sua ligação, me senti como uma criança novamente, mais do que o designer. Eu chorei (ao ver tudo se unir no The Shed). Para mim, foi muito emocionante e às vezes acho que esquecemos que a moda é sobre emoção. Isso foi tão puro, uma bela emoção".
“Eu acho que ela não tem limites com a música dela e, com a minha moda, eu também não, e é aí que nos conectamos. É moda? É arte? É mobília? O que é isso? Não tem nome. Não se pode colocar em uma caixa nem rotular, e acho que foi o que ela mais amou". (Rousteing para a Vogue).
Foto: Ryan Pfluger |
"É milagroso que Olivier tenha participado desta aventura com toda a sua equipe e talento, eles enviaram uma magnífica equipe de alta costura para nos mimar em todos os sentidos. Quando vi sua mais recente coleção, senti que estávamos muito alinhados; especialmente com o que eu imaginei que meu time de flautistas fosse. Muitas vezes, é difícil descrever música sem palavras, mas Balmain realmente entende minhas descrições esotéricas.
Foi uma sensação curiosa quando eu e James Merry vimos a coleção Balmain, e testemunhamos uma sobreposição tão óbvia entre nossos dois headspaces. Estávamos à procura de uniformes semelhantes a plantas para os integrantes deste 'concerto de ficção científica', e ficamos entusiasmados quando o encontramos. Esses seres quase digitais, sem solo, vagando pela passarela (do show) parecem não possuírem flautas. Eles tinham barbatanas e prismas de luz saindo deles, pêlos albinos e sombras de flores de pêssego. Perfeito!
Eu saí do meu caminho com o sistema de som 360º (o primeiro desse tipo em shows) e roupas para tentar alcançar um equilíbrio suave, uma energia que pode curar" - Björk sobre Olivier Balmain para a Dazed e Vogue.
Björk diz que planeja apresentar esse grande espetáculo em todo o mundo: "Podemos tocar na Cidade do México em uma tenda, por exemplo", ela sugere. Por enquanto, a artista está apenas "tentando fazer esse dar certo". "Ainda podemos melhorar um pouco, estamos fazendo ajustes. Mas tenho certeza de que no final do mês, quando os shows em Nova York terminarem, terei um ponto de vista diferente. Se eu me conheço bem, provavelmente estarei desesperada para fazer novas músicas".
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Entrevista ao jornal islandês Morgunblaðið, junho de 2019:
"Eu sinto que ainda estou fazendo música pop, mas com uma extensão em todas as direções. Acredito que o videoclipe permanece sendo um dos melhores métodos de expressão que os seres humanos já inventaram, e uma das coisas mais empolgantes que faço é tentar encontrar uma linguagem visual para as minhas canções. É como resolver um caso criminal, escolher a paleta de cores, a narrativa e a textura certa.
Cornucopia é uma espécie de continuação disso, mas também do mundo VR em 360º que explorei em Vulnicura. O plano era tornar o sonho da realidade virtual algo possível, fazer uma espécie de "teatro vocal".
Embora tenhamos mantido essa ideia em um cenário elegante e futurista, a energia dos músicos precisava também ser muito crua e 'islandesa'”.
O coral Hamrahlíðarkórinn, que conta com 52 integrantes e é de Reykjavík, viajou até Nova York para acompanhar a cantora na pequena residência de apresentações no The Shed, com o apoio do governo islandês, assim como o septeto flautista Viibra. Em agosto, o espetáculo chegará ao México, mas a partir de agora, Björk espera incluir corais locais, já que viajar com a equipe completa pelo mundo seria muito caro.
Dica: Clique AQUI e confira um vídeo do fã brasileiro Bruno Barrionuevo, que esteve em um dos shows e contou sua experiência em assistir as novas performances da artista.