Na Islândia com Björk, a nova matéria da Pitchfork mergulhou fundo nos triunfos e tragédias que deram origem a "Fossora", novo álbum do ícone do pop experimental. Confira a tradução completa do bate-papo:
Descendo por uma estrada de duas pistas em seu robusto Land Rover branco, Björk conversa em um tributo sinuoso à paisagem vulcânica da Islândia quando um caminhão escavadeira aparece. O obstáculo inesperado apresenta uma chance para um ponto de travessura. Enrugando o nariz, Björk olha para uma abertura apertada no caminho à frente e pisa no acelerador para realizar uma perigosa manobra de ultrapassagem. “Atrevida, atrevida!”, ela vibra, quase demolindo um poste na estrada. De volta à pista, ela tira o casaco e casualmente retoma a ode à ilha da sua nação.
"Aquele vulcão ali", diz ela, apontando para uma passagem na montanha, “uma de suas erupções mais famosas causou a destruição das plantações na França, e as pessoas dizem que foi por isso que a Revolução Francesa aconteceu. Bem, é uma coisa muito islandesa: foi a nossa montanha que causou a Revolução Francesa".
A voz de Björk está um pouco rouca, mas ela está tão efervescente como sempre. Usando um collant em estampa cheia de retalhos e um vestido vermelho em camadas cheio de recortes em formato oval, ela mecanicamente lambe os lábios e franze as feições, como se atrás de seu rosto houvesse uma fábrica de tubos e pistões para gerar sua inteligência industrial. Atrás de óculos escuros, seu delineador em tom pastel evoca um ar carnavalesco.
O modelo do que é o pop experimental está se mostrando uma guia turístico previsivelmente mágica, passando por riachos negros e as planícies de lava de antiga poeira estelar nórdica. Ela recita histórias de vulcões truculentos e façanhas vikings em um tom que é cativantemente banal – meio nerd, meio guia de viagem escolar, meio Zeus do Ártico na frente de um espelho do quarto, ensaiando um TED Talk sobre trovões.
À medida que o Land Rover "rosna" pelos vales islandeses, cada curva e balanço espalha sujeira preta ao redor dos tapetes do carro, misturando-se a faixas de cabelo variadas, embalagens de doces e cartões de jogos de futebol deixados para trás pelo filho de um amigo. Embora Björk seja uma defensora vocal do radicalismo ecológico, ela mantém sua afeição como refém, tão facilmente quanto comanda o terreno traiçoeiro da Islândia. Seu banco de motorista do SUV lembra o vídeo deliciosamente estranho de seu sucesso de 1995, "Army of Me", que Björk estrelou em um combate desconexo em um caminhão monstruoso.
Esse vídeo foi um dos muitos dos anos 1990 e início dos anos 2000 em que Björk deu um salto mortal na MTV – e no pop em geral – como uma artista performática ocupando um shopping center. Vários desses clipes vieram de seus dois primeiros álbuns solo, "Debut" de 1993 e "Post" de 1995, que apresentaram sua voz explosiva para as massas, através de músicas em grande parte extraídas do underground dance do Reino Unido. Depois que esses discos excêntricos venderam mais de 3 milhões de cópias cada, ela compôs obras islandesas varridas por cordas, pela neve e batidas geológicas - o colossal "Homogenic" de 1997 - apenas para se reinventar novamente, e "Vespertine" de 2001, como uma beatmaker em uma "sotto voce" sensual quase envolta em um ventre de sons eletrônicos.
Esses discos eletrificaram a música pop, despejando algo efervescente na água em que os artistas modernos nadam; Os devotos de Björk variam de SZA a Caroline Polachek, Rosalía e Radiohead. E como sua influência borbulhou na consciência popular, ela passou o Século XXI demarcando novas vanguardas pop como compositora e produtora, inventando batidas divertidas, complicadas, às vezes punitivas para complementar suas melodias e orquestrações inventivas. Seja narrando um clima decadente, um casamento prestes a expirar ou uma família dilacerada, suas canções permanecem estranhamente e sedutoramente suas.
"Fossora", o 10º álbum da cantora de 56 anos, carrega ecos dessas vidas passadas, mesmo quando ela afunda os dedos dos pés em novos terrenos com combustíveis que aparecem na forma de beats que lembram reggaeton, sons de clarone e enxurradas de gabber quase mutantes, uma cortesia da parceria com a dupla indonésia Gabber Modus Operandi. Ela também ainda escreve canções matadoras que falam sobre amor, usando sua voz arrepiante para desfazer pontadas no coração. Björk ainda está psiquicamente sintonizada com os pequenos atos de autossabotagem que os adultos, temendo o amor, se submetem para evitar a submissão a esse sentimento. No centro do álbum está o hino "Sorrowful Soil" e o épico "Ancestress", ousados passos artísticos que servem como tributos profundos à sua falecida mãe, a ativista ambiental Hildur Rúna Hauksdóttir, que morreu em 2018. Essas são faixas que, instantaneamente, tomam lugar ao lado das músicas mais comoventes de sua carreira.
O Land Rover desce a estrada em uma encosta rochosa até chegarmos ao que Björk chama de sua "cabana", que na verdade é uma vasta pousada de dois andares onde ela passa férias, caminha, escreve álbuns, ensaia sextetos de clarinete e recebe festas de casamento, conforme o sentimento a leva. Depois de estacionar, ela caminha por um lado do jardim que é cheio de plantas herbáceas perenes e bétulas. Ela então me apresenta a um trecho particular de uma praia em tom cinza, e também seu amável pai que tem uma barba branca, Guðmundur Gunnarsson. Ele estava cortando a grama e usando um agasalho preto.
A tal cabana tem vista para um imenso lago, que surgiu há 9.000 anos na brecha entre as placas tectônicas da América do Norte e da Eurásia. A localização imponente induz uma espécie de transe: encare por tempo o suficiente os seixos com "covinhas" espalhados pela costa e eles parecem te olhar de volta. A erupção que formou a bacia do lago também esculpiu a área onde, segundo Björk, "os vikings que não conseguiam lidar com a guerra e a política, e os megalomaníacos mandões iniciaram a primeira democracia do mundo no ano de 930". Ela ri. "Desculpe, estou apenas sendo uma guia turístico".
Ela lidera o caminho que leva ate uma câmara octangular coberta por camadas de telhas de madeira distribuídas de forma não regular, que cobrem a moldura como uma pele desgrenhada. Esta cabana isolada, bem em frente a uma plantação de batatas, é feita sob medida para produzir sons com uma reverberação sobrenaturalmente doce. Do lado de fora, parece uma capela particular para a divindade de sua voz. Entre no lugar e os limites daquelas paredes e o piso espelhado desconcertante, pode te fazer se sentir como um astronauta treinando para viver no espaço. Em momentos agitados, esse centro sobrenatural é onde ela se esconde para cantar.
A câmara de reverberação é uma adição recente à cabana de Björk, que ela possui desde 2015, quando ela se mudou de um lugar menor nas proximidades dali após seu divórcio. A 40 minutos de carro da cidade, o refúgio oferece um abrigo do centro de Reykjavík, onde Björk tende a se esconder dos turistas atrás de imensos óculos de sol, enquanto flutua por lojas de discos e bares.
Fotos: Irma Studio. A câmara de reverberação é uma cabine de gravação reverb, que oferece um espaço envolvente sem a necessidade de amplificação de som de palco tradicional e processamento de áudio. Foi projetada pela empresa Arup e pelo Irma Studio para a turnê "Cornucopia". A pedido de Björk, o Irma Studio construiu e projetou uma nova versão na Islândia, feita de telha de madeira Oregon Pine e Cedar.
Lã densa e cores que lembram doces revestem os corredores da cabana do chão ao teto, como tufos de arco-íris e a textura do cabelo dos bonecos Troll. Metade da cabana é folclórica e rústica; o resto tem a sensação de uma casa de diversões psicodélica e fofinha.
No andar de cima fica o quarto arejado, sem decoração e com paredes vermelhas onde, em 2019, Björk começou a escrever "Fossora". É difícil acreditar que esse espaço humilde abrigava uma atividade tão sagrada – que Björk se escondeu aqui para interrogar sua alma, construir beats loucos e uma sequência de acordes usando uma biblioteca de samples construída com sua própria voz. Mas o sótão tem uma seriedade tranquila. Através da janela do comprimento da sala, ela aponta para o horizonte ao norte e o poderoso "vulcão em escudo" Skjaldbreiður. Durante o lockdown, este esconderijo pitoresco serviu como espaço para as raves de Björk e sua família, colaboradores, amigos e crianças hiperativas de todos. "Nós nos sentávamos ao redor da fogueira, conversávamos muito, bebíamos um pouco de vinho, fazíamos uma caminhada, voltávamos e dançávamos/headbanging (batendo cabelo) por uma hora”, ela brinca. O tapete de PVC no canto, ela acrescenta, não é para ioga, mas para fazer o deslizamento chamado de "knee slide".
Foto: Acordeão, piano e itens pessoais da cabana de Björk.
O passatempo pandêmico que Björk chama sardonicamente de "rave doméstica" é um dos vários segmentos da colcha de retalhos de "Fossora". "Comecei este álbum de um jeito "muito conceitual", tipo: "Este é o álbum de clarinete!". Então, no meio do caminho, eu fiquei tipo: "ah, foda-se isso". Ela sorri. No final, ela sentiu que era um "álbum da Islândia": muitas vezes desinibido e volátil, mas também mergulhado nas tradições folclóricas e do coral no país, com cordas que Björk programou indo ao café local.
Ela traduz o título do disco como "ela que cava". Seu fascínio por cogumelos unificou os temas de sobrevivência, morte e meditação ecológica do álbum. Ela enquadra o anterior, "Utopia" (2017), como um paraíso após seu divórcio traumático. Em "Fossora", ela retorna à Terra: "É algo que vive no subsolo, mas não as raízes das árvores", ela explica sobre a metáfora do fungo que guiou o disco. "Um álbum de raiz de árvore seria bastante severo e estóico, mas os cogumelos são psicodélicos e aparecem em todos os lugares". Ela considera esta tese, aparentemente satisfeita. "O meu "período de fungo" foi borbulhante e divertido, com muita dança", conclui. "E o headbanging/bate cabelo no final de cada música...”. Ao dizer isso, ela solta um catártico: "aaahhhh", caindo em um devaneio techno.
Embora os temas de cura e acerto de contas sejam abundantes, Björk não queria que um sentimento de perda definisse "Fossora": "O "Vulnicura" é o meu álbum de luto", ela enfatiza, se referindo ao disco de 2015 e sua lacerante investigação sobre divórcio e traição. "Este não é o álbum de luto, mas inclui isso". "Sorrowful Soil" e "Ancestress", as duas músicas que lutam com a morte de sua mãe, exercem uma força centrífuga no álbum com sua grandiosidade luminosa, sua precisão e escala impressionantes. "A máquina dela respirou a noite toda enquanto ela descansava", Björk canta na faixa de sete minutos "Ancestress", narrando do leito de morte de sua mãe. "Revelou sua resiliência, e depois não mais".
A mãe de Björk estava doente há anos, mas em 2018, quando sua condição piorou, foi um choque. Uma eterna otimista, Björk costumava tranquilizar sua mãe, que era mais cautelosa, de que as coisas em suas vidas ficariam bem. Elas se acostumaram a superar a adversidade ao longo de anos de elaboração de suas visões de mundo conflitantes.
Embora pareça insondável revisitar uma Björk adolescente fazendo o inferno com sua banda punk Tappi Tíkarrass, ela cresceu como uma nerd de ciências e matemática cronicamente introvertida. Seus pais se divorciaram quando ela tinha 2 anos. Ela dividia seu tempo entre seu pai mais conservador, que passou a liderar o sindicato dos eletricistas da Islândia, e sua mãe, que se mudou para um emaranhado de hippies, dando à filha uma complicada, independência anárquica.
Mesmo quando Björk tinha apenas 3 anos, ela conta, era ela quem olhava para os dois lados antes de levar sua mãe pela estrada, e não o contrário. A natureza livre de sua educação se tornou algo que ela gostava, mas também ressentia. Como ela disse em uma entrevista de 1995: "Você pode imaginar ser criada por sete adultos que odeiam trabalhar, e tudo o que eles querem fazer é brincar com você o dia todo e contar histórias de quatro horas de duração e fazer pipas?".
Foto: Björk e sua mãe.
Ela se mudou para seu primeiro apartamento, no centro de Reykjavík, aos 17 anos. Ela dividia seu tempo entre tocar com sua mais recente banda punk, Kukl, e trabalhar na fábrica tirando minhocas de peixes. Como uma atividade paralela, ela imprimiu e vendeu um livro de conto de fadas escrito à mão. Apesar de sua própria inclinação para o misticismo, a punk e pragmática Björk se irritou com os princípios espirituais da nova era de sua mãe homeopata. "A cada geração, você se rebela contra algo, mas na verdade é parte de você", diz ela agora. "É a sua sombra".
Nas décadas seguintes, a dupla estabeleceu um ritmo: Björk, a "pensadora esperançosa", Hildur Rúna, a niilista. Na meia-idade, a mãe dela morava em uma remota tenda/oca californiana com um chefe nativo americano, antes de retornar à Islândia para ensinar artes marciais. Hildur liderou causas unificadoras, como quando foi contra a fundição de alumínio irresponsável na Islândia, algo que as duas protestaram em conjunto, em 2006. Coisas assim se tornaram menos comuns em sua vida. Ainda assim, quando sua mãe começou a adotar teorias de conspiração políticas rebuscadas, Björk apelava para a razão e, na maioria das vezes, conversava com ela.
"Você pode se gabar de ser otimista o dia todo", diz ela, mas à medida que envelhecia, Björk admitiu que estava usando sua visão do tipo mais "brilhante" para encerrar conversas complicadas. Ela confronta essa tendência em "Atopos", a abertura desenfreada de "Fossora": "Perseguir a luz com muita força é uma forma de se esconder", ela canta, contraindo sua voz sobre os clarones e trêmulos: "Essas não são apenas desculpas para não se conectar?".
Björk nunca foi de funerais. De fato, por 20 anos, ela não compareceu a um único velório para um familiar. "Eu ajudava a organizar os músicos e o setlist, mas não podia entrar na igreja", diz ela. "Eu ficaria tão brava. Eu sou ateia, então era tipo: "Espere um minuto! Há um padre aqui que nunca conheceu a pessoa que faleceu!!!?". É como ter um rapper fazendo raps que ele não escreveu".
Durante a doença de sua mãe, Björk escreveu "Sorrowful Soil" como uma espécie de encômio. Ela descreve o típico encômio musical da Islândia como um "obituário patriarcal", usando melodias melodramáticas para entregar uma biografia seca. "Inconscientemente, eu estava pensando que os obituários do matriarcado deveriam ser tipo: "Ela tinha 400 ovos, ela fez três ninhos, e ela era uma niilista". Ela sorri, distraidamente esfregando a barriga. "As letras são um pouco estranhas, sabe? E eu pensei: "vou deixar que seja estranho". Às vezes, a gente arruína as coisas deixando todas as palavras e a gramática apropriadas".
Logo depois que "Sorrowful Soil" foi escrita, a mãe de Björk morreu. Lançada em um turbilhão de tristeza e planejamento, Björk tentou organizar um culto que ela pudesse suportar assistir. Com seu irmão, ela montou um funeral de igreja não religiosa oficializado pelo amigo da família Hilmar Örn Hilmarsson, que é o chefe da religião nórdica da Islândia e um ex-membro do projeto paralelo Throbbing Gristle Psychic TV. Ela está satisfeita com o resultado, mas parte dela se pergunta se ela realmente disse adeus.
Depois de umas férias de recuperação na Grécia, Björk concebeu uma homenagem mais substancial à sua mãe. Esta daqui, "Ancestress", assumiu a forma de um epitáfio em estilo folclórico islandês. "Eu escrevi páginas e páginas e páginas e editei, apenas para deixar exatamente as palavras que eu quero que estejam lá", diz ela. "Se eu fosse um padre, é o que eu teria dito no funeral". A gravação apresenta seu filho, Sindri, nas harmonias nos vocais de apoio.
Depois de completar "Ancestress", Björk pensou na despedida de sua mãe e percebeu o que estava faltando: a natureza. Em funerais de filmes extravagantes, ela lembrou: "Sempre havia alguém queimando o barco ou jogando as cinzas de um penhasco. Eu me senti muito estranha por estar dentro de uma igreja onde a gente (em tese) estava deixando o espírito seguir. Então inventei meu próprio ritual".
Ela passou um ano trabalhando com o diretor Andrew Huang e James Merry, seu diretor criativo que também cria suas máscaras, para sonhar e filmar uma procissão ritual fúnebre em um vale de montanha, que é ambientado em "Ancestress". (Uma parte foi filmada ao lado de um vulcão, ela acrescenta: "Porque é sobre a energia da mãe, então o vulcão está obviamente dando isso".) Este réquiem visual para sua mãe sairá quando Björk estiver pronta, depois de algumas das músicas de "Fossora" com singles mais leves e "travessos". Embora tenha medo de sensacionalizar sua dor, ela espera que o filme ajude a formar uma "bolha protetora" em torno da memória de sua mãe.
Foto: Björk segurando um retrato que sua avó pintou dela quando criança.
Voltamos à sala de estar de plano aberto para uma pausa para o almoço, onde os membros da equipe de Björk se espreguiçam em poltronas de tronco de árvore esculpidas em formas onduladas e fantásticas, principalmente entregues de suas antigas casas por contêineres quando ela se mudou em tempo integral para a Islândia durante a pandemia. A congregação é severamente supervisionada por quatro corvos taxidermizados em "galhos de areia" que se projetam das paredes.
Enquanto seu fotógrafo, Viðar Logi, e um assistente chegam de uma caça aos cogumelos, Björk fala de sua obsessão pandêmica por documentários como "Fungos Fantásticos", que é cheio de imagens com rápida passagem de tempo da disseminação de redes de fungos. "Eu fiquei tipo: "Eu não consigo entender por que estou ressoando tanto com isso", ela diz, mastigando uma salada. "É porque esse vírus está se movendo, ferindo todo o planeta?".
Os cogumelos também tinham um apelo poético: ao decompor plantas e animais mortos e reciclarem seus nutrientes no solo, os fungos criam uma nova vida a partir da morte. Eles também podem digerir poluentes, decompor petróleo bruto, plásticos e armazenar carbono para reduzir o aquecimento global – um símbolo de esperança recuperada. Cogumelos são muitas vezes a primeira vida a brotar da ruína nuclear, acrescenta Björk. "Eles provavelmente vão se sair muito bem, depois que...".
Um longo silêncio surge. Depois que a humanidade acabar?
"Não que eu seja niilista", ela diz, resistindo à implicação de que a extinção humana é inevitável. "Mas se você ampliar/dar zoom no mundo deles, na verdade estamos indo bem".
Björk admite que uma onda de eventos apocalípticos, em casa e nas manchetes, ameaçou pisotear sua visão positiva das coisas. Ao descrever seus anos vivendo meio período em Nova York, entre o nascimento de sua filha em 2002 e o início da pandemia, o ritmo efervescente de sua conversa oscila. "A violência nos EUA está em uma escala que nem consigo imaginar", diz ela com uma calma que parece um transe, considerando o ataque de tiroteios em massa e a brutalidade policial. "E ter uma filha que é meio americana na escola [em Nova York], a 40 minutos de Sandy Hook...” Ela suspira, levantando as palmas das mãos. "Quando estamos aqui, absorvo toda a Islândia. Se uma pessoa é morta no norte, todos nós sofremos. É uma mentalidade de ilha. Nos Estados Unidos, sendo apenas uma pessoa que vem de uma ilha, toda a violência se tornou demais para mim".
Sua desesperança se multiplicou à medida que o cenário político despencou. Ela se lembra da renúncia de Trump ao Acordo Climático de Paris em 2017 como um ponto baixo particular. "Foi a única vez que algo aconteceu no noticiário em que eu realmente desabei e chorei", diz ela. "Eu fiquei destruída". O acordo para reduzir as emissões em vários setores, ao qual o presidente Biden voltou em 2021, mostra como mesmo o utopismo falho pode colher benefícios, diz ela. "Todo mundo olha para esta lista [utópica], tipo: "De jeito nenhum!". Mas é assim que os mecanismos de sobrevivência funcionam quando tudo está quebrado! Temos que inventar alguma merda utópica, e se metade disso se tornar realidade, ótimo".
Parte do projeto de Björk ao longo de sua carreira tem sido desmistificar o corpo humano, escrevendo sobre o material biológico pegajoso e grudento, em vez do símbolo social superficial. Essa visão nua e crua do que significa ser humano é ainda mais urgente em um momento de renovados ataques judiciais à liberdade reprodutiva. "Nós possuímos nossos corpos ou não?", ela se pergunta. "Quando uma mulher faz algo como se alistar no exército, ou tem um bebê – é o corpo dela? Ela é a agente disso, ou é propriedade do patriarcado?".
Antes de "Fossora", Björk passou vários anos criando obras desvinculadas da forma corpórea. Seu projeto "Vulnicura VR" transferiu sua devastação para um mundo mais seguro e irreal; A Utopia flutuava acima de sua confusa realidade pós-divórcio em flautas de "tapete mágico" e orquestração panglossiana/otimista. Mas ela sempre soube que teria de voltar à realidade biológica. Ela se lembra de pensar, enquanto viajava para esses reinos de fantasia: "Mais tarde vou lidar com o corpo, ou simplesmente morrerei".
Ela agora se sente fisicamente enraizada e emocionalmente, diz ela, não há mais trauma de divórcio para dragar. "Já superei isso", diz ela, acenando com a mão. "Está absolutamente finalizado". No entanto, depois de explorar podcasts de psicologia, ela ficou fascinada com os arquétipos junguianos de vitimização, apresentando-os em jantares e insistindo que os amigos também identificassem seu sabor de vitimização. Seu próprio complexo – adiando suas necessidades para beneficiar funcionários, amigos e familiares – cria um estado de espírito "de cabeça para baixo", diz ela. "Você pensa que está sendo o herói, mas na verdade está sacrificando algo e então se torna uma vítima".
"Victimhood", a música que ela escreveu enquanto estudava esses arquétipos, é sua concessão final à saga do divórcio – um monumento às suas consequências psicológicas, construída, ela brinca, sobre um alicerce de "autopsicologia amadora". A música apresenta uma buzina sinistra, lúgubre; e um sexteto de clarone, composto por três homens e três mulheres. Onde "Utopia" idealizou o separatismo matriarcal – colocar "as mulheres e crianças em uma ilha para ter bebês com os pássaros", como ela mesma diz – o álbum "Fossora" admite que os homens estão aqui para ficar. "Você aprende como tecer [eles] no mundo novamente e vive com isso", diz ela ao dar de ombros de um jeito divertido.
O encerramento de "Fossora", "Her Mother's House", apresenta a filha de Björk, Ísadora, de 19 anos, em um comovente lamento sobre o ninho recém-esvaziado da artista. "Sou eu tentando tirar sarro de mim mesma", diz a islandesa. "Às vezes, sou muito graciosa, deixando tudo seguir em frente quando meus filhos vão embora. Mas às vezes sou muito desajeitada no dia seguinte".
Alguma das escolhas de Björk ao criar sua filha divergiram da forma a mãe dela a criou? Ela olha para fora, observando "nuvens de algodão doce" se depositarem nos cumes dos "ombros" das montanhas. "Minha mãe não falava muito sobre os sentimentos dela", ela finalmente diz. "Eu sempre quis entender como fui feita e por que meus pais não estavam mais juntos. E ela não queria falar sobre isso. Então decidi contar muitas coisas à minha filha".
Ela acredita que as crianças podem suportar mais do que seus pais tendem a pensar. "Se você não sabe alguma coisa, isso se torna um tabu que recebe muito mais energia do que realmente tem. Então, tentei compartilhar — com limites. Eu quero tirar o mistério de algumas das minhas escolhas".
Björk continua sendo uma figura materna para uma multidão de fãs online, muitos jovens e de comunidades queer. Sua fanbase rotineiramente inunda suas postagens de mídia social com hype livre de toxicidade, trocando curiosidades e sempre circulando clássicos no YouTube, como sua explicação encantadora , no final dos anos 80, sobre o funcionamento misterioso de um aparelho de TV. Seu apelo intergeracional, eu sugiro, é uma rara fonte de coisas boas na internet.
"Estou realmente ficando vermelha", ela diz. "Você acha que algo disso tem a ver com o mundo finalmente estar pronto para a música matriarcal? Eu fiquei tão feliz por Kate Bush conseguir aquele sucesso internacional com "Running Up That Hill". Não estou dizendo que vamos assumir, mas sinto que todas as matriarcas escondidas por aí estão apenas chorando, tipo: "Finalmente, não precisamos nos esconder!"".
Sua homenagem a Kate Bush, embora claramente espontânea, tem a profundidade de uma tese preconcebida - como se, subconscientemente, o ressurgimento de Bush alimentado por Stranger Things tivesse dado a Björk uma visão lateral de sua própria mitologia. Nos anos 80, ela lembra, Bush "era a única coisa. Era ela que estava fazendo isso. Todo o resto era patriarcado". Ela ri. "Desculpe, estou exagerando – mas ela era a produtora, ela estava criando o ambiente em que estava cantando. Aquele, para mim, é o ambiente mais matriarcal. E eu sinto que o mundo e a geração Z estão prontos para isso".
Depois de uma rápida sessão de fotos à beira-mar, Björk se despede da cabana e volta para o Land Rover. Entre as ruelas do centro de Reykjavík, à procura de uma vaga de estacionamento adequadamente enorme, ela chega ao que a maioria de nós consideraria um beco sem saída – uma placa de "Proibido Entrar" guardando uma rua de mão única e desordenada. Onde a estrada corta, duas pessoas pairam em cautelosa contemplação do carro de sete lugares vindo em direção a eles. A motorista determinada espia além de seus rostos questionadores, seus olhos brilhando.
Um dos pedestres, percebendo para onde isso está indo, notadamente faz uma careta para a placa de "Proibido Entrar" e depois dá a volta, e com os olhos esbugalhados mostrando a indignação de quem estava cumprindo a lei. Um sorriso anima o rosto de Björk como um espírito a capturando por dentro. "Ele não é islandês", ela me assegura, movendo o carro. "Isto é o que os islandeses fazem".
Ela arremessa o Land Rover nas bocas estreitas da saída da rua. No meio do caminho, ela faz uma pausa para considerar uma vaga de estacionamento ampla o suficiente para aproximadamente metade de seu veículo. Sentamos imóveis enquanto o painel do carro chacoalha ao som da gloriosa e festeira "BDE" da jovem rapper britânica Shygirl, faixa que é parte de uma playlist de sete horas que vai do kuduro angolano ao gqom sul-africano, e ao recital de um coral de mulheres islandesas. Em uma concessão à realidade material, Björk sai daquele espaço e desvia para fora da rua de mão única, pisando no freio em um recinto próximo cheio de placas de guincho.
Adrenalina impulsionada, ela salta para fora da porta e caminha para um bar de vinhos nas proximidades. Ela pede uma garrafa de champanhe e martela [na tela do celular] uma enxurrada de mensagens que constituem algo como um "Bat-Sinal" para reunir os amigos dela.
Logo, eles aparecem, incluindo um trio local docemente desgrenhado chamado sideproject, que ela chama de "gênios da geração Z". (Em "Fossora", eles contribuíram com percussão para "Ovule", tendo sido instruídos a canalizar os "sons lúgubres" da "Cantina Band" de Mos Eisley em Star Wars). A atenção deles desperta algo em Björk. Depois de mais alguns drinques, praticamente vibrando, ela se levanta e faz uma caminhada até sua loja de discos favorita, a 12 Tónar. O plano é fazer um set de DJset improvisado, mas ela espia pela janela para encontrar nenhum sinal de vida, nenhum pessoal para conversar, apenas um recorte de papelão de seu eu mais jovem olhando de trás do fundo da loja.
- Jazz Monroe para a Pitchfork, setembro de 2022.
Fotos: Viðar Logi. Reprodução/Divulgação.
Registros feitos na Islândia na casa de Björk.
Depoimentos sobre o visual da capa de Björk:
Arjun Ram Srivatsa, animador: "Eu animei imagens da Björk! Muito orgulhoso de ter trabalhado na reportagem de capa dela para a Pitchfork. Ela e Vidar Logi foram colaboradores incríveis, e eu me diverti muito conversando com eles sobre crescimento, decomposição e movimento dos cogumelos. Além disso, Björk me fez chorar ao falar sobre a comunidade [de músicos] do clarone. Um salve para a equipe criativa mais legal de todas: Jennifer Aborn, Callum Abbott e Marina Kozak, que fizeram um alfabeto inteiro com cogumelos reais!".
"Fiz também um pequeno vídeo com Björk para Pitchfork. Depois da minha ligação com ela e Vidar Logi, fiquei entediado durante uma noite de sexta-feira, então pesquisei "mushroom walk nyc" no Google. Acontece que na manhã seguinte, o New York Mycological Society estava organizando uma busca por cogumelos em Pelham Bay. Acordei às 8, andei de bicicleta até lá e aprendi tudo sobre fungos e moldes de limo. Também recebi o achado do dia: uma carcaça de cigarra que estava se decompondo de um fungo "parasita". Peguei tudo o que aprendi e criei os visuais para os visuais da capa de Björk com a equipe criativa da Pitchfork. Agora estou louco por cogumelos!".
Marina Kozak: "Para a capa de Björk na Pitchfork, criei um alfabeto inteiro feito por cogumelos, que foi animado por Arjun. Definitivamente, eu não tinha que fazer um alfabeto inteiro, mas qual é! Por que não? É a Björk!".
Ela saiu em busca de uma variedade de cogumelos de todas as formas e tamanhos para criar a textura certa, antes de fotografá-los em frente a uma tela azul. O resultado foi uma biblioteca de mais de 50 imagens de cogumelos, que renderam as letras manipulas digitalmente.